Blindness ***1/2
Realização: Fernando Meirelles. Elenco: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Yusuke Iseya, Yoshino Kimura, Don McKellar, Danny Glover, Gael García Bernal, Susan Coyne, Mitchell Nye, Maury Chaykin, Sandra Oh. Nacionalidade: Canadá / Brasil / Japão, 2008.
Existem duas vantagens claras em não ter ainda lido o livro de 1995 de José Saramago ‘Ensaio Sobre a Cegueira’: a primeira, é poder ainda lê-lo pela primeira vez; a segunda, é ter podido apreciar a versão de Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”, “The Constant Gardener”) sem a tentação imediata de comparar as duas obras.
Ainda que sejam duas linguagens distintas, Meirelles fez questão de se manter fiel ao espírito da obra de Saramago, e, caso houvesse dúvidas, a receptividade do Nobel português foi óbvia. Enquanto o argumento de Don McKellar transporta a essência metafórica num plano mais emocional que real, César Charlone concretiza o isolamento e a cegueira, lavando a fotografia das suas cores, queimando a imagem e ampliando os brancos.
Os habitantes de uma cidade não nomeada começam, subitamente, a ficar cegos, naquilo que parece uma epidemia altamente contagiosa. Depois do primeiro homem (Yusuke Iseya) perder a visão é a vez do médico que o atende (Mark Ruffalo), o homem que lhe rouba o carro (o argumentista Don McKellar). Por decreto da Ministra da Saúde (Sandra Oh), todos aqueles a quem foi diagnosticada a ‘doença branca’ são enviados de quarentena para as instalações de um antigo asilo mental sob vigilância militar. Apesar de não estar atacada por esta cegueira, a mulher do médico (Julianne Moore) acompanha-o. Com poucas condições e com a chegada de cada vez mais doentes, a sobrelotação, os escassos alimentos, e o abandono a que são votados pelo exterior começam a criar tensões entre as camaratas. O autonomeado rei da camarata três (Gael Garcia Bernal) assume o comando das operações, exigindo pagamentos pela comida, com consequências cada vez mais perniciosas.
Num contexto de pânico e paranóia o governo revela-se ineficaz em lidar com a crise, optando pela solução mais fácil: a desresponsabilização. Enquanto isso, no centro de quarentena vive-se uma crescente loucura (acentuada pela câmara de Charlone), apesar dos esforços do médico e especialmente da sua mulher para manterem a ordem e a democracia.
Não sabemos o nome de nenhuma destas personagens, porque elas não são nomeáveis. E se quando começa o filme é fácil colocar cada uma na sua caixa etiquetada, ao longo da história elas provando que são muito mais ou muito menos do que a nossa primeira impressão. O caso mais evidente é o da personagem de Moore (se tem de haver um protagonista), que vai crescendo com o desenrolar dos acontecimentos. Pela sua forma de lidar com eles a imagem que temos dela também se vai construindo. E se, aqui, ver lhe dá uma vantagem sobre os demais, dá-lhe também um maior sofrimento. Por não poder ignorar tudo o que é fétido, miserável e sujo.
“Blindness” revela a dimensão complexa da natureza humana perante a catástrofe. A opção pela ordem ou pelo caos, pela decência ou pela violência, pelo sadismo ou pelo altruísmo, pelas normas ou pela anarquia. Perante o desespero e a fome surge o egoísmo, a indiferença e o oportunismo. Mas surge também a empatia, a compreensão, o sacrifício e o perdão. A organização social pode ser uma coisa frágil, mas assim que é eliminada torna-se urgente recuperá-la, mesmo que seja sob outra forma. Ambiguamente, a forma como cada um se deixa guiar pelo bem ou pelo mal mostra-se mais fruto do instinto de sobrevivência (a protecção do grupo e a direcção de um líder) do que de uma decisão moral. O caminho para um estado de selvajaria e brutalidade é, por norma, considerado uma ‘descida’. Por norma também, é mais fácil descer que subir. Mas como na beleza existe a surpresa da amoralidade, no pesadelo é a moralidade que nos deixa desconcertados.
Em “Blindness” os homens são seres que se acomodam, que se sujeitam, enquanto as mulheres aparecem como líderes da acção, assumindo as responsabilidades e as consequências das decisões. Destabilizados na sua relação de poder com os outros, os homens extraem o sexo do amor. No meio do terror, só as mulheres conseguem amar.
Mas se um livro, especialmente um escrito por Saramago, nos consegue fazer adentrar num mundo abstracto e simbólico, “Blindness” como filme perde alguma dessa capacidade. Porque precisávamos de mais tempo com a história, mais dureza talvez, para que o nosso pensamento pudesse chegar onde tem de chegar. Em vez disso, “Blindness” deixa-nos um pouco à deriva e depois tenta segurar-nos às suas conclusões com a dispensável narração de Danny Glover.
Esta não é a humanidade que queremos, mas é uma humanidade que existe por aí, longe dos nossos olhos, ou então perto e mantemo-los fechados. A cegueira é a prisão na qual nos deixamos colocar sem perguntas, onde nos dizem o que pensar e o que fazer.
“Blindness” tem início com a agitação do quotidiano actual, trânsito, multidões, barulho, actividade. Somos nós, hoje, activos. Mas isso não quer dizer que estejamos a fazer qualquer coisa. Andamos a correr de um lado para o outro, mas isso não quer dizer que estejamos a viver.
CITAÇÕES:
“I don't think we went blind; I think we always were...”
DANNY GLOVER (homem com a pala no olho)
“The only thing more terrifying than blindness is being the only one who can see.”
JULIANNE MOORE (mulher do médico)