DOCLISBOA 2005 - 2ª parte: O PERÍODO PÓS-PESEIRO
Entre o ir e o voltar à Culturgest falhei uns tantos filmes. Resumindo, o treinador já não o era, e o presidente, dizia-se, podia deixar de o ser.
Quanto aos documentários, voltei para uma saga de quase 3 horas sobre a emigração magrebina para França, "Memoires d'Immigrés" de Yamina Benguigui. Usando como elemento base de análise o núcleo familiar imigrante, na verdade não se tratava bem de um documentário mas de três, cada um concentrando-se num elemento diferente desse núcleo, o homem, a mulher/mãe e os filhos, fazendo-se cada um corresponder a uma fase diferente do processo histórico da imigração magrebina para França (e dos processos de imigração em geral, afinal): a primeira vaga de imigração, o reagrupamento familiar e o surgimento das segundas geração de imigrantes (por muito discutível que seja este termo) nascidas nos países de acolhimento.
Funcionando como um todo, é uma obra de fundo que compõem um quadro bastante completo do fenómeno em causa, permitindo um enquadramento histórico bastante completo, dedicando-se a aspectos da emigração que muitas vezes ficam esquecidos, (o papel da mulher na emigração, por exemplo, raramente é alvo da atenção devida), acabando no entanto por denotar um pouco os anos que já passaram desde a sua conclusão (trata-se de uma obra de 1999) no último episódio dedicado às segundas gerações, embora seja refrescante ver o tema analisado sem o ruído do 11 de Setembro por detrás (hoje em dia é impossível, por muito injusto que seja, deparar-se com um documento sobre as segundas gerações muçulmanas na Europa sem que a questão do fundamentalismo islâmico venha à baila) e acabe por funcionar como um interessante retrato de grupo de um tempo que (apesar de recente) já não existe.
Ainda assim um documentário, no seu todo, importante e actual, tendo em conta os dias que vivemos.
Depois veio "Before the Flood" de Yan Yu e Li Yifan. Épico é a primeira palavra que vem à cabeça para falar deste documentário, que acompanha o processo de desalojamento da cidade chinesa de Fengjie, uma das cidades submersas pela monumental barragem das Três Gargantas (monumental é outra definição que também fica bem a este filme). Utilizando um registo próximo do usual na 6ª Geração chinesa (perante este filme é impossível não nos vir à memória "Tiexi District" de Wang Bing, mas também não será descabido falar, por exemplo, de um Jia Zhang-Ke) utilização de câmara digital, planos longos que deixam a acção correr, completa ausência de voz off, este documentário consegue transportar-nos literalmente para aquela espaço. E permite-nos, acima de tudo, acompanhar (viver?) um processo de uma dimensão absolutamente esmagadora para a nossa realidade, fora de quaisquer parâmetros que possam ser por nós estabelecidos ou mesmo conceptualizados (basta recordar o processo de realojamento da Aldeia da Luz, que foi de facto um empreendimento grande, e comparar com o que nos é mostrado neste documentário para chegar à conclusão... que não é sequer comparável).
Majestoso (e com esta vão três definições, qualquer uma delas perfeitamente adaptável ao documentário em causa).
Entretanto, e porque o mundo não ficou parado, as novidades continuavam a chegar. O presidente lá acabou por sair, mas deixou um substituto no seu lugar (resultado talvez das suas origens nobres, por estes lados prefere-se a sucessão mais ou menos dinástica à eleição popular, e tendo em conta a escolhas feitas das últimas vezes que foram dadas opções de escolha, não me parece um processo nada mau, bem pelo contrário), do treinador novo é que não havia notícia (bem, haviam capas de jornais mas essas eram tão más que o melhor era nem sequer olhar).
Mas voltando de novo ao documental, foi a vez de uma sessão dupla, que agrupou duas obras de estreia. "Urgences, les Nuits des Villes" de Pierre Maillis-Laval e "Documento Boxe" de Miguel Vasconcelos, o primeiro acompanhando equipas de emergência médica nas noites de uma cidade francesa, o segundo debruçando-se sobre o mundo do boxe profissional português.
São primeiras obras, e isso nota-se num ou noutro pormenor, mas qualquer um deles aguenta-se bastante bem. Talvez porque seja uma realidade que já vimos tantas vezes ficcionada, a acção das urgências hospitalares retratada em "Urgences..." fica a saber a pouco e acaba por cansar a partir de uma certa altura. Quanto a "Documento Boxe" tem como base um conjunto de personagens que o sustenta bem e lhe permite manter um ritmo contínuo do princípio ao fim.
Poder-se-á dizer que, neste caso, o documentarismo português bateu por pontos (mas não por KO) o francês.
Seguiu-se outro momento alto do Doc. "Avenge But One of My Eyes" de Avi Mograbi.
Documentário israelita, centrado no conflito israelo-palestiniano, apresenta-o numa perspectiva extremamente original, contrapondo alguns dos mitos da luta judaica pela liberdade com a resistência palestiniana de hoje. Abertamente parcial (Mograbi é claramente contra a ocupação dos territórios palestinianos por Israel), Mograbi joga, através de um habilidoso jogo de montagem, com os discursos israelitas de glorificação desses mitos do judaísmo, cruzando-os com momentos do dia-a-dia da ocupação israelita, e consegue criar nos espectadores (quase apetece falar numa manipulação semiótica desse discurso, mas não sei até ponto isto não será um termo inventado por mim neste preciso momento, confesso que os meus conhecimentos na matéria são pouco mais que nulos) uma segunda leitura desse discurso (é impossível estar a ouvir os alunos israelitas, numa sala de aula e sob aprovação da sua professora, a glorificar o martírio de Sansão, que sacrificou a sua vida para matar os inimigos do seu povo, e não o associar automaticamente à acção dos bombistas-suicidas palestinianos).
O cinema documental pode abrir horizontes, mostrar-nos algo que nunca vimos, outros lugares, outras culturas, outras realidades. Mas também pode dar origem a novas visões sobre aquilo que já conhecemos. E este documentário consegue fazer isso.
Novos horizontes era também o que se pedia fora da Culturgest, mas a verdade é que insistiam em não surgir. Continuava a espera, então.
por Sérgio