“Food for thought” - cozinhada por Abel Ferrara

Uma das coisas boas do cinema de qualidade é permanecer uma fonte privilegiada de “food for thought”. De, mais do que nos mostrar, fazer-nos pensar. E nada como uma digestão profunda e demorada para darmos o tempo passado isolados numa sala escura como bem empregue.
Tudo isto a propósito do último filme de Abel Ferrara, “Mary”. Mas esta não é ainda a crítica ao filme. É só para deixar algo que mastigar durante o fim-de-semana.
Abertamente religioso, sem ser doutrinário, “Mary” fala da procura incessante pelo verdadeiro significado das coisas.
A maioria das pessoas é ensinada a preencher esse vazio através de um conjunto de respostas que lhes são entregues numa forma ordenada, com sentido, e com muito boa publicidade por trás – a religião, qualquer uma.
Há também quem se mantenha longe dessas inquietudes, achando que o mundo material providencia todas as respostas e preenche todas as necessidades. Até ao dia em que tudo perde o seu sentido, em que o que tínhamos por certo nos é arrebatado e damos por nós no meio de um pesado nada.
Muitas vezes, são esses os momentos de revelação. No desespero do sofrimento descobrimos o que estava ali pronto, à nossa frente, só á espera que o aceitássemos. Que estivéssemos preparados para o compreendermos, despojados de orgulho e limpos de preconceitos. E a verdade está ali, encadernada num conjunto coeso de páginas – a religião, uma vez mais.
Esse caminho espiritual que cabe a todos fazer, a razão porque fomos colocados neste mundo, o processo de crescimento que precisamos fazer acerca de nós próprios, dos outros, do mundo (afinal é tudo o mesmo), é encurtado com o fast-food espiritual que constitui a religião. Conclusões pré-cozinhadas, suficientemente gerais e ambíguas para agradarem a uma grande quantidade de pessoas.
Muito possivelmente (com grande probabilidade) as conclusões a que chegamos por via do nosso próprio esforço e as que chegamos por via do esforço feito por grandes pensadores do passado, aqueles que se deram ao trabalho de desenhar a estrada, serão bastante semelhantes. E aqui não há lugar a grandes distinções, pois qualquer que seja a religião o amor não deixa de ser o conceito de base.
A grande diferença está no meio de chegar às respostas. Aceitarmos o que outros pensaram, aceitarmos a sua experiência e a sua aprendizagem sem questionarmos e dispensarmos o nosso próprio pensamento, as nossas experiências e a nossa própria aprendizagem, é um caminho. Na minha opinião, o mais fácil. E o menos gratificante. O verdadeiro prazer é sermos nós a descobrir o sagrado que está dentro de cada ser humano. E dentro de cada ser não-humano também. Tudo é sagrado e deve ser respeitado como tal.
Nos dramatismos da religião católica, do sacrifico de Jesus Cristo por todos nós, da culpa de judeus, romanos, ou outros, fica-me a questão: se Deus tudo sabe, sabia também como tudo iria decorrer, por isso cada actor desempenhou exactamente o papel que lhe cabia, de Pilatos a Torquemada, nesse grande desígnio universal que todos se esqueceram de nos dizer qual é.
Por isso, sem guião e na base do improviso, tentarei desempenhar o meu papel o melhor possível, decidindo no sentido do bem, procurando respeitar tudo e todos. Só posso esperar que, quando chegar o momento do realizador gritar “Corta!”, eu possa descansar com a certeza de ter usado a verdade em cada uma das minhas palavras.
[Acho que excedi um pouco o âmbito deste blog com estas contemplações, mas a arte é também os seus frutos, as reflexões que gera e as ideias que desperta.]