A 59ª edição do Festival de Cinema de Cannes, concluída ontem, premiou os seguintes filmes:
LONGAS-METRAGENS
Palma de Ouro
THE WIND THAT SHAKES THE BARLEY, de Ken Loach
Grande Prémio
FLANDRES, de Bruno Dumont
Prémio de Argumento
PEDRO ALMODÓVAR, por VOLVER
Prémio de Realização
ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑÁRRITU, por BABEL
Prémio de Interpretação Masculina
JAMEL DEBBOUZE, SAMY NACÉRI, ROSCHDY ZEM, SAMI BOUAJILA, BERNARD BLANCAN, em INDIGÈNES de Rachid Bouchareb
Prémio de Interpretação Feminina
PENÉLOPE CRUZ, CARMEN MAURA, LOLA DUEÑAS, BLANCA PORTILLO, YOHANA COBO, CHUS LAMPREAVE, em VOLVER de Pedro Almodóvar
Prémio do Júri
RED ROAD, de Andrea Arnold
CURTAS-METRAGENS
Palma de Ouro
SNIFFER, de Bobbie Peers
Prémio do Júri
PRIMERA NIEVE, de Pablo Aguero
Menção Especial
CONTE DE QUARTIER, de Florence Miailhe
UN CERTAIN REGARD
Prémio Un Certain Regard - Fondation Gan pour le Cinéma
LUXURY CAR, de Chao Wang
Prémio Especial do Júri
TEN CANOES, de Rolf De Heer
Prémio de Interpretação Masculina
DON ANGEL TAVIRA, em EL VIOLÍN de Francisco Vargas
Prémio de Interpretação Feminina
DOROTHEEA PETRE, em CUM MI-AM PETRECUT SFÂRSITUL LUMII de Catalin Mitulescu
Prémio do Presidente do Júri
MEURTRIÈRES, de Patrick Grandperret
QUINZENA DOS REALIZADORES
Prémio Camera de Ouro
A FOST SAU N-A FOST?, de Corneliu Porumboiu
CINÉFONDATION
Primeiro Prémio
GE & ZETA, de Gustavo Riet
Segundo Prémio
MR. SCHWARTZ, MR. HAZEN & MR. HORLOCKER, de Stefan Mueller
Terceiro Prémio - ex-æquo
MOTHER, de Siân Heder
A VÍRUS, de Ágnes Kocsis
PRÉMIO VULCAIN DE ARTISTA-TÉCNICO
STEPHEN MIRRIONE, pelo seu trabalho na montagem do filme BABEL
Realização: Claude Chabrol. Elenco: Isabelle Huppert, François Berléand, Patrick Bruel, Marilyne Canto, Robin Renucci, Thomas Chabrol, Jean-François Balmer, Pierre Vernier, Jacques Boudet, Philippe Duclos, Roger Dumas. Nacionalidade: França, 2006.
Pela sétima vez, Isabelle Hupert é a musa de Claude Chabrol, e carrega este filme com a leveza que só é possível a uma grande actriz. Desta feita, no papel da juíza de instrução Jeanne Charmant-Killman. Teimosa e incansável, Jeanne está decidida a limpar o sistema biunívoco de favores entre negócios e política. Um pouco à laia de exemplo, Jeanne manda prender o arrogante presidente de uma grande empresa, Michel Humeau (Francois Berleand). Uma série de provas incriminatórias atribuem a Humeau o gasto de avultadas somas de dinheiro da empresa em prendas para a sua amante. Humeau é preso sem sequer receber os medicamentos para a sua alergia dermatológica. No final do primeiro interrogatório a que Jeanne o sujeita, começamos a ter pena de quem quer que tenha de enfrentar a dura juíza apelidada de “piranha”. Entretanto, Jacques Sibaud (Patrick Bruel), um jovem arrogante que forneceu a Jeanne uma série de pistas proveitosas passa convenientemente a ocupar o lugar de Humeau na empresa.
Jeanne não teme ninguém e desde um senador ao juiz presidente, ela reduz todos ao seu verdadeiro tamanho. No entanto, a sua capacidade de controlo termina no campo laboral. Em casa, Philippe (Robin Renucci) é um marido à beira da depressão que, com a crescente notoriedade do caso de Jeanne, se sente cada vez mais à sombra da mulher.
O sobrinho do casal, Félix (Thomas Chabrol, o filho do realizador numa excelente participação) é o mentor de Jeanne, com os conselhos e o humor necessários, e contrapondo a sua falta de ambição à obsessão de Jeanne com o trabalho.
A estratégia do “grupo de interesses” de juntar Jeanne com uma outra juíza (Maryline Canto) com a expectativa de que esta limite a acção de Jeanne não funciona. Numa outra leitura deste ‘poder’, as duas mulheres juntam-se contra “os homens”, enquanto eles tratam de se delatar uns aos outros (quem disse que as mulheres são sempre cabras umas para as outras?).
Mas da mesma forma que a ignorância da lei não pode ser usado como desculpa, o desconhecimento das regras tácitas e códigos silenciosos de entendimento a nível tão elevado não permite automaticamente que Jeanne continue o seu caminho, por mais justas que sejam as suas intenções.
A origem humilde de Jeanne parece dar-lhe legitimidade para esta luta do mérito contra os privilégios. Mas Jeanne é também ela detentora de um poder que a domina. Também ela está ébria com o poder que a lei francesa lhe atribui. E da mesma forma que aquele grupo de empresários e políticos que usam fundos públicos no seu interesse particular, também Jeanne, na sua mistura charmosa (Charman) e mortal (Killman), parece ignorar que o seu poder é uma ilusão.
Enchendo este filme de humor (os interrogatórios de Jeanne no seu pequeno gabinete são hilariantes), e de detalhes (mentiras denunciadas no tom de voz e nos olhares), Chabrol despe todos eles dos seus privilégios, revelando pessoas incapazes de controlar as suas própria vidas.
A música de Matthieu Chabrol (também filho do realizador) reforça o tom crítico do filme e cria o ambiente adequado aos momentos mais hitchcockianos, enquanto a fotografia do português Eduardo Serra (na sua quinta colaboração com Chabrol) rodeia de cores naturais o natural jogo de influências.
“L’Ivresse du Pouvoir” fala da embriaguez do poder, dos seus efeitos secundários, da ressaca, e dos seus sérios perigos para a saúde.
Realização: Larry Clark. Elenco: Jonathan Velasquez, Francisco Pedrasa, Milton Velasquez, Yunior Usualdo Panameno, Eddie Velasquez, Luis Rojas-Salgado, Carlos Velasco, Iris Zelaya, Ashley Maldonado, Laura Cellner, Jessica Steinbaum. Nacionalidade: EUA, 2005.
Jonathan (Jonathan Velasquez), Kiko (Francisco Pedrasa), Milton (Milton Velasquez), Eddie (Eddie Velasquez), Louie (Luis Rojas-Salgado), Porky (Yunior Usualdo Panameno) e Carlos (Carlos Velasco) são sete amigos que vivem em South Central, na zona leste de Los Angeles, “o gueto” nas palavras de Kiko.
Ainda antes do título, Jonathan apresenta o seu grupo de amigos e lança o tom documental de uma ficção que se baseia livremente num grupo de jovens que Clark conheceu em Venice, Los Angeles.
Em confronto com a cultura negra alimentada à base de hip hop, roupas largas e as ocasionais armas, eles preferem o punk, as calças justas e os skates. E, ao contrário do normal fascínio pelo delinquente que se salva do seu meio, estes são jovens consideravelmente normais, que apenas aproveitam o facto de não haver adultos por perto para fazerem o que querem (seja beber, namorar, ou tocar música punk).
Um dia decidem ir praticar skate nos “nove degraus” do liceu de Beverly Hills, onde conhecem duas jovens que ficam fascinadas pelo seu estilo Mas onde são também ameaçados pela polícia, e perseguidos pelos residentes (um deles uma cópia clara do “disparo primeiro, pergunto depois” Charlton Heston). Subitamente, o seu bairro torna-se o refúgio seguro para onde tentam voltar.
Dez anos depois de “Kids” (1995) e três do extraordinário “Ken Park” (2002), Larry Clark volta a confirmar a sua capacidade de observar jovens sem os julgar. Desta feita menos explícito sexualmente, Clark pega novamente num grupo de jovens não-actores dos quais consegue retirar interpretações de uma naturalidade desarmante. O diálogo honesto entre Kico (Francisco Pedrasa) e Nikki Jessica Steinbaum) sobre os seus respectivos estilos de vida é, sem dúvida, um dos melhores momentos de “Wassup Rockers”, em conjunto com o regresso a casa de comboio ao som “Take Me Somewhere Nice” de Mogwai.
Infelizmente, a imparcialidade de Clark com estes jovens não se estende ao resto das personagens: os brancos estão entre o estúpido e o mau, os negros são violentos, e os hispânicos têm todos uma noção de comunidade que se auto-protege. A eventual intenção de mostrar o processo de afirmação e crescimento desta juventude (é curiosa a cena em que Jonathan brinca com bonecos depois de supostamente ter tido sexo com a namorada), e a pressão dos pares quando apenas se quer ser criança, perde-se entre o excesso de medíocres manobras de skate, a barulhenta e cansativa banda sonora à base de punk rock latino, e todos os condescendentes preconceitos.
Realização: Sérgio Trefaut. Género: Documentário. Nacionalidade: Portugal, 2004.
Aos que “tradicionalmente” se consideram lisboetas, o filme “Lisboetas” não dá a conhecer nada de novo. As comunidades de africanos, brasileiros, russos, ucranianos e chineses que vieram para Lisboa à procura de melhores condições de vida fazem já parte do pano de fundo desta cidade. Mas o que este filme consegue é dar uma dimensão humana a essa realidade paralela, com a qual muitos de nós se cruzam, mas que raramente consideramos parte integrante da cidade, e sim como um anexo.
Infelizmente, o tempo é escasso, e cada comunidade merecia um olhar mais atento e mais profundo. Ainda assim, os olhos ficam abertos, com uma nova atenção, que se espera ajude a criar a aceitação e inclusão desejadas.
Sérgio Tréfaut documenta experiências, soterradas na burocracia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, nos enganosos estratagemas de empreiteiros que fogem aos contratos, numa escola pouco integradora e na postura condescendente para quem não consegue comunicar na nossa língua.
A câmara passeia mais por rostos do que por espaços, numa abordagem personalizada e tocante. No entanto, Tréfaut cinge-se ao lado negativo, os casos de integração e de sucesso são esquecidos, aí reside o grande desequilíbrio desta obra.
Lisboa continua a mudar, num processo quase orgânico, onde diferentes culturas, religiões e identidades se juntam, mas a maior parte das vezes sem se misturar. Estou certa de que todos ganharíamos se percebêssemos, de uma vez por todas, que as fronteiras são elementos totalmente artificiais, e que temos sempre algo a aprender com o outro, especialmente se esse outro for diferente de nós.
As versões em português que Seu Jorge fez das músicas de David Bowie para o filme “The Life Aquatic With Steve Zissou”, de Wes Anderson, encontram-se a rodar ininterruptamente no meu leitor, ainda que não necessariamente por esta ordem:
01. Rebel Rebel
02. Life on Mars?
03. Starman
04. Ziggy Stardust
05. Lady Stardust
06. Changes
07. Oh! You Pretty Things
08. Rock N' Roll Suicide
09. Suffragette City
10. Five Years
11. Queen Bitch
12. When I Live My Dream
13. Quicksand
14. Team Zissou (bónus)
E para quem este conceito de versão faz muita confusão, aqui fica a opinião do visado e a citação incluída no CD:
“Had Seu Jorge not recorded my songs acoustically in Portuguese, I would never have heard this new level of beauty which he has imbued them with.”
DAVID BOWIE
E em Novembro vai ser a vez de passar mais uma noite com este senhor.
Realização: Terrence Malick. Elenco: Colin Farrell, Q'Orianka Kilcher, Christian Bale, Christopher Plummer, August Schellenberg, Wes Studi, David Thewlis, Yorick van Wageningen. Nacionalidade: EUA, 2005.
1607. Três navios ingleses chegam às costas da Virginia. Liderados pelo Capitão Newport (Christopher Plummer), um grupo de colonizadores prepara-se para se estabelecer no Novo Mundo, e fundar a cidade de Jamestown. Com eles está o Capitão John Smith (um doce e sujo Colin Farrell), libertado das acusações que o traziam preso no convés do barco, que é enviado à aldeia dos nativos para trocas comerciais. Capturado pelos índios e arrastado para a casa de Powhatan (August Schellenberg), o chefe da tribo, John Smith é salvo de uma nova morte por Pocahontas (Q'Orianka Kilcher), a filha preferida do chefe. Pocahontas é uma adolescente movida pela curiosidade, que se apaixona por John Smith como se ele fosse uma representação do divino. Por sua vez, John Smith, um explorador romântico, sonhador e idealista, apaixona-se pela ideia que ela representa: a esperança de uma nova vida, uma liberdade selvagem, e a possibilidade utópica de construir uma sociedade iluminada, baseada na justiça, na igualdade e na prosperidade.
Eu não conhecia a história da Pocahontas (suponho que facilita o facto de não me dar com crianças) e acho que isso acabou por ser uma vantagem neste caso. Aliás, o facto de o seu nome nunca ser referido ao longo do filme, insinua que Malick também se quis afastar das versões existentes.
Filmar com bom gosto um romance entre um homem de 27 anos e uma rapariga de 11 (neste caso Farrell tem 30 e Kilcher 15), por muito fictício que seja, requer algum talento. E aqui ‘TALENTO’ é mesmo a palavra-chave, a todos os níveis.
A relação de descoberta mútua de John Smith e Pocahontas é filmada como se de um sonho se tratasse, como um encontro de espíritos, sensual e apaixonado. Malick mostra o espanto da descoberta como se o experimentasse ele mesmo, e o primeiro encontro de ambos tem mais encantamento e receio do que qualquer filme sobre invasões de extraterrestres.
Com o crescimento da colónia surge o fiável, gentil e moderado John Rolfe (Christian Bale). Como contraponto a Smith, ele constrói com Pocahontas uma relação totalmente nova, mais madura. Enquanto Smith queria conquistar e ser conquistado, Rolfe ama a pessoa que Pocahontas é. A tragédia de Smith é só tarde de mais se dar conta disso. Um e outro simbolizam a oposição entre sonho e realidade.
Na parcialidade do “nobre selvagem”, que parece desconhecer a violência antes da chegada do branco, Pocahontas representa uma ponte entre as duas culturas, mas que ainda assim acaba por ter o sabor amargo da cedência ao mundo branco. Quando se entra na corte do Rei James I (um cameo de Jonathan Pryce), encontra-se um mundo geométrico e simétrico, onde a natureza é confinada entre linhas rectas, como Pocahontas dentro de um corpete.
Malick traduz os pensamentos das personagens em voice over, hipnotizando-nos como ondas que, aliados à fotografia dolorosamente bela de Emmanuel Lubezki, à sublime banda sonora de James Horner, e a uma montagem quase lírica nos transportam através de uma deliciosa poesia épica.
O empenho de Malick neste projecto vai mais além do tecnicamente soberbo, é uma obra emocional (o seu quarto filme em 32 anos). Com a sua singular visão, Malick usa som e imagem para criar um universo sensorial. Mais do que recriar ele tenta experimentar, e através de personagens de dimensões humanas ele cria uma série de perspectivas pessoais onde se mistura a verosimilhança e o espectáculo de gloriosas e inebriantes paisagens. Numa abordagem filosófica, Malick faz uma observação atenta de como os seres humanos lidam com o amor, a morte, a guerra e a natureza.
Ao seu serviço estão os magnéticos Colin Farrell e Christian Bale, fabulosos numa expressividade quase mímica. Christopher Plummer saiu claramente prejudicado da sala de montagem mas as faladas 3 horas de DVD prometem compensá-lo. Quanto à quase estreante Q'Orianka Kilcher (prima da cantora Jewel) só há elogios a fazer (tirando a audácia de ter nascido em 1990 numa combinação letal de pai peruano e mãe suiça). A beleza pouco convencional e o ar grave dão à sua Pocahontas a medida certa de deslumbramento e sabedoria. No seu rosto espelham-se todas as emoções e a câmara não tem outra alternativa senão segui-la. Malick dá-se ainda ao luxo de ter grandes actores em pequeno papéis, como é o caso de Noah Taylor, John Savage, David Thewlis e Ben Chaplin.
No fim deste impressionante drama sobre os primeiros passos de uma nação, sentimo-nos subjugados pela sua dimensão, cogitando sobre aquilo que foi ganho e perdido num suposto processo de civilização.
CITAÇÕES:
“They are gentle, loving, faithful, lacking in all trickery; they have no jealousy, no sense of possession. They know no slander, envy, or forgiveness.”
COLIN FARRELL (John Smith)
“Love...shall we deny it when it visits us...shall we not take what we are given.”
COLIN FARRELL (John Smith)
“There is only this. All else is unreal.”
COLIN FARRELL (John Smith)
“Tell her what? It was just a dream. I am now awake.”
COLIN FARRELL (John Smith)
“I let her love me. I made her love me.”
COLIN FARRELL (John Smith)
“You run through me, like a river.”
Q’ORIANKA KILCHER (Pocahontas)
“Come away.”
Q’ORIANKA KILCHER (Pocahontas)
“Conscience is a nuisance. A fly. A barking dog.”
YORICK VAN WAGENINGEN (Argall)
“She weaves all things together.”
CHRISTIAN BALE (John Rolfe)
“Sweet wife, love made the bond, love can break it too.”
CHRISTIAN BALE (John Rolfe)
“Pocahontas - Did you find your Indies, John?
John Smith - I may have sailed passed them.”
Q’ORIANKA KILCHER (Pocahontas) e COLIN FARRELL (John Smith)
Realização: Joe Roth. Elenco: Samuel L. Jackson, Julianne Moore, Edie Falco, Ron Eldard, William Forsythe, Aunjanue Ellis, Anthony Mackie, Marlon Sherman. Nacionalidade: EUA, 2006.
Brenda Martin (Julianne Moore) entra nas emergências de um hospital em estado de choque e com as mãos cobertas de sangue, dizendo que o seu carro foi roubado perto de Armstrong Houses, um bairro social de negros. Lorenzo Council (Samuel L. Jackson) é o detective encarregue da investigação, ele próprio oriundo de Armstrong. À beira da histeria, Brenda acaba por dizer que o seu filho de quatro anos, Cody (Marlon Sherman), se encontra no banco de trás do carro. Ao saber da notícia, o irmão de Brenda, Danny Martin, detective na cidade vizinha de Gannon (Ron Eldard) parece querer precipitar a resolução do caso, e rapidamente um destacamento da polícia de Gannon (maioritariamente branca), cerca o bairro de Armstrong, proibindo os residentes de sair até que o criminoso seja preso.
A tensão no bairro vai aumentando, à medida que chegam cadeias de televisão para cobrir o caso. Lorenzo vê-se pressionado entre o bairro que conta com ele e o seu dever profissional para com Brenda, sobretudo porque sente que esta não lhe está a contar toda a história. Para o ajudar, conta com a ajuda de Karen Colluci (Edie Falco), a líder de um grupo que procura crianças desaparecidas.
“Freedomland”, cujo argumento foi adaptado por Richard Price, autor do livro no qual o filme se baseia, ambiciona levantar questões fortes sobre as relações raciais, a responsabilidade parental, a dor e a culpa. Mas Joe Roth parece estar tão desesperado por dizer algo que, no processo, se esquece do que pretende realmente dizer. A falta de consistência da história é evidente no pouco tempo dado ao conflito em Armstrong, como se este fosse apenas um pano de fundo, e ficamos sem acompanhar devidamente o crescendo de raiva e tensão que se vai criando.
Samuel L. Jackson tem aqui uma interpretação emocionalmente honesta. A sua intensidade dirigida ao exterior contrastando com a abordagem introvertida de Julianne Moore. Apesar da sua personagem despertar pouca compaixão, Moore domina a complexidade das suas várias dimensões, algumas mais tortuosas. E Edie Falco (“Sopranos”), como uma mãe em sofrimento, orgulhosa da sua lealdade com o filho desaparecido e da sua teimosia em não continuar com a sua vida. A cada uma destas actrizes é dado um forte monólogo, perturbante e desconfortável.
Mas todo este esforço dramático é desperdiçado em falhas como arcos de personagens deixados em aberto ou o pouco sentido que faz Lorenzo tirar tempo a uma investigação urgente para ir ver o seu filho à cadeia. Percebe-se que a cena tem o propósito de mostrar a auto-recriminação pelo seu insucesso como pai, mas fica-se com a sensação de ter sido filmada sem saber onde iria ser encaixada. E é esta a ideia geral com que se fica de um filme que tem mais olhos que barriga.
Quem tenha prioridades mais urgentes no cinema (AVISO: VÃO VER O “THE NEW WORLD” DE TERRENCE MALICK) poderá deixar “Freedomland” para trás sem remorsos.
CITAÇÕES:
“Sometimes there’s nothing left to do but let go.”
SAMUEL L. JACKSON (Lorenzo Council)
Realização: Jean-Pierre e Luc Dardenne. Elenco: Jérémie Renier, Déborah François, Jérémie Segard, Fabrizio Rongione, Olivier Gourmet, Stéphane Bissot, Mireille Bailly. Nacionalidade: Bélgica / França, 2005.
Mantendo o pano de fundo dos reveses das classes baixas da Bélgica industrial, os irmãos Dardenne conseguem com “L’Enfant” um resultado mais acessível que os anteriores “Rosetta” e “Le Fils”. O que não quer dizer necessariamente melhor. Em 2005, em Cannes, “L’Enfant” recebeu a Palma de Ouro, “Rosetta” recebeu o mesmo prémio na edição de 1999, mas, para mim, “Le Fils” continua a ser o trabalho mais forte e mais coeso dos Dardenne.
Sonia (Deborah Francois), uma jovem de 18 anos, regressa a casa depois do nascimento do seu filho, Jimmy, para descobrir que o namorado Bruno (Jérémie Renier) sub-alugou o seu apartamento enquanto ela estava no hospital a dar à luz e ele dormia num abrigo. Num tom de hábito, Sonia perdoa Bruno, com a condescendência de quem espera pouco mais dele. Bruno é um pequeno criminoso, sem amigos (apenas cúmplices), que faz uso de jovens para levar a cabo os seus pequenos golpes. Mas a Bruno falta-lhe engenho e ambição, os seus pequenos meios chegam para os seus pequenos fins, e a sua despreocupação com o dinheiro “ganho” nunca o fará chegar mais longe.
A vida de Bruno é feita de objectos, um casaco, uma máquina fotográfica, um chapéu. Tudo pode ser trocado, vendido, comercializado. É com essa frieza que Bruno aproveita a oportunidade de vender o seu filho para adopção por 5.000 euros.
Bruno e Sonia vivem uma relação imatura. A constante postura de Bruno de pedido de desculpas, encontra em Sonia uma receptividade de quem quer muito ser amada e que, por isso, tudo aceita. Mas a cega confiança que Sonia deposita nele é destruída, num misto de incompreensão e raiva, com o desaparecimento de Jimmy.
Sonia é a única pessoa a quem Bruno parece conseguir ligar-se, é por ela que ele volta atrás. E é através do seu companheiro de assaltos de 14 anos, Steve (Jérémie Segard), que Bruno tenta remediar as consequências do seu comportamento e a sua indiferença para com Jimmy.
Os Dardenne não constroem convincentemente em Bruno uma personagem tão dura e fria que torne credível a venda do seu filho com base num impulso. Além disso, o permanente silêncio desse recém-nascido torna-o quase ausente na história, como um boneco. No cinema realista e humanista dos Dardenne, este tipo de pormenores é indesculpável. Por outro lado, Bruno não demonstra um fio de sentimento pelo filho (o mais próximo a isso que ele parece conseguir chegar é ao dar-se conta de que isso lhe falta). Ao contrário do filme “Tsotsi”, onde um bebé muda o rumo do protagonista, a redenção de Bruno é muito pouco merecida.
Mas, em contrapartida, a mão dos Dardenne não falha no que toca a mostrar o mais escuro da condição humana com um toque devastadoramente leve. O ambiente das ruas, do tráfego, das luzes florescentes, engolem estas personagens sujas e de roupas velhas tornando-as invisíveis. As opções de confronto fogem ao habitual histerismo, e a falta de maturidade para verbalizar os confrontos permite soluções mais emocionais, mas nem por isso menos brutais.
Bruno passeia um carrinho de bebé vazio, tal como passeia uma moto avariada, símbolos das suas falhas humanas. Do que lhe falta ainda crescer, porque é ele a verdadeira criança desta história. E todo o crescimento é feito com dor.
Realização: Abel Ferrara. Elenco: Juliette Binoche, Forest Whitaker, Matthew Modine, Heather Graham, Marion Cotillard, Stefania Rocca. Nacionalidade: Itália / França / EUA, 2005.
O filme com que Abel Ferrara venceu o Prémio Especial do Júri no passado ano em Veneza é bastante mais interessante pelas questões que levanta do que por aquilo que relata. “Mary” fala da procura espiritual de três personagens com distintas relações com a religião.
A CRENTE.
Marie Palesi (Juliette Binoche) recusa-se a regressar a Nova Iorque no final das filmagens de “This Is My Blood”, onde desempenhou o papel de Maria Madalena. Usando a sua personagem do ‘filme dentro do filme’ como inspiração, Marie vai para Jerusalém, movida por um chamamento de fé. Durante mais de um ano perde-se por Israel. Marie abandona amigos e posses em busca das raízes da religião.
O NÃO-CRENTE.
O realizador Tony Childress (Matthew Modine), é ambicioso e movido pelo lucro, indiferente à crise de Marie, ele regressa a Nova Iorque, onde, passado um ano se prepara para fazer o lançamento do seu filme. Mas “This Is My Blood” está rodeado de polémica. Na ocasião de um boicote à estreia e de uma ameaça de bomba, Tony está decidido a tornar-se um mártir pela liberdade de expressão e de criação.
O CÉPTICO.
Ted Younger (Forest Whitaker) é apresentador de um programa de televisão de debates sobre a vida de Cristo (num improvável horário de prime-time). Para ele a religião é retórica, conceitos e argumentos, com poucas repercussões na sua vida privada, entre compromissos profissionais e pessoais, dúvidas existenciais e relações conflituosas. Face à estreia de “This Is My Blood”, Ted decide convidar Tony e Marie para o seu programa.
O filme de Ferrara não prima pela credibilidade, estranhas coincidências permitem recursos dramáticos demasiado óbvios. A meio da negociação de um pacto mediático entre Ted e Tony, a sua limusina é apedrejada por um gang, numa clara referência a “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”. O «Go to Hell!» da mulher de Ted (Heather Graham) face à sua indiferença durante o período de gravidez lança, sem subtileza, o caminho descendente. Mais tarde, em simultâneo, as três personagens principais são confrontadas com a sua crise existencial, e a introspecção de última hora de Ted perante um trágico acontecimento dificilmente pode ser classificada de sincera redenção. A mensagem final parece andar à volta de “todos os pecados serão cobrados”. Mais uma vez a fé é vendida com o medo do castigo.
“Mary” vai intercalando a narrativa com imagens do filme “This Is My Blood” (filmado em Matera, Itália, também local de rodagem de “O Evangelho Segundo São Mateus” de Pasolini e de “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson), ajudando à fusão de Marie e Maria Madalena. É também ela, Marie e a sua serenidade, a fonte de inspiração de Tony e Ted, em diferentes momentos. A todos eles parece estar a ser dada uma segunda oportunidade de vida.
O mundo do cinema e da televisão é aqui mostrado como uma amálgama de pecados, um símbolo do mundo moderno, onde a busca espiritual é marcada por uma forte e dolorosa inquietude. Os meios de comunicação são também mostrados na sua duplicidade: como forma de aproximar quem está longe, mas também de afastar através de mentiras e dissimulações.
Especialistas como Jean-Yves Leloup, Elaine Pagels e Amos Luzzatto, que investigaram o Evangelho de Maria Madalena, documento encontrado em 1945 no Egipto e negado pelo Vaticano, fazem a sua aparição como convidados do programa de Ted Younger. “Mary” retira muita da sua força destes debates, que lançam insidiosamente ideias para pensar. E depois há o elenco, todo ele poderoso: Juliette Binoche, Forest Whitaker, Matthew Modine, Heather Graham e Marion Cotillard.
Cada um verá em “Mary” o que quiser. Ferrara não avança grandes explicações. Mas entre o positivo e o negativo, Ferrara mostra-nos meios para procurar as respostas.
Uma das coisas boas do cinema de qualidade é permanecer uma fonte privilegiada de “food for thought”. De, mais do que nos mostrar, fazer-nos pensar. E nada como uma digestão profunda e demorada para darmos o tempo passado isolados numa sala escura como bem empregue.
Tudo isto a propósito do último filme de Abel Ferrara, “Mary”. Mas esta não é ainda a crítica ao filme. É só para deixar algo que mastigar durante o fim-de-semana.
Abertamente religioso, sem ser doutrinário, “Mary” fala da procura incessante pelo verdadeiro significado das coisas.
A maioria das pessoas é ensinada a preencher esse vazio através de um conjunto de respostas que lhes são entregues numa forma ordenada, com sentido, e com muito boa publicidade por trás – a religião, qualquer uma.
Há também quem se mantenha longe dessas inquietudes, achando que o mundo material providencia todas as respostas e preenche todas as necessidades. Até ao dia em que tudo perde o seu sentido, em que o que tínhamos por certo nos é arrebatado e damos por nós no meio de um pesado nada.
Muitas vezes, são esses os momentos de revelação. No desespero do sofrimento descobrimos o que estava ali pronto, à nossa frente, só á espera que o aceitássemos. Que estivéssemos preparados para o compreendermos, despojados de orgulho e limpos de preconceitos. E a verdade está ali, encadernada num conjunto coeso de páginas – a religião, uma vez mais.
Esse caminho espiritual que cabe a todos fazer, a razão porque fomos colocados neste mundo, o processo de crescimento que precisamos fazer acerca de nós próprios, dos outros, do mundo (afinal é tudo o mesmo), é encurtado com o fast-food espiritual que constitui a religião. Conclusões pré-cozinhadas, suficientemente gerais e ambíguas para agradarem a uma grande quantidade de pessoas.
Muito possivelmente (com grande probabilidade) as conclusões a que chegamos por via do nosso próprio esforço e as que chegamos por via do esforço feito por grandes pensadores do passado, aqueles que se deram ao trabalho de desenhar a estrada, serão bastante semelhantes. E aqui não há lugar a grandes distinções, pois qualquer que seja a religião o amor não deixa de ser o conceito de base.
A grande diferença está no meio de chegar às respostas. Aceitarmos o que outros pensaram, aceitarmos a sua experiência e a sua aprendizagem sem questionarmos e dispensarmos o nosso próprio pensamento, as nossas experiências e a nossa própria aprendizagem, é um caminho. Na minha opinião, o mais fácil. E o menos gratificante. O verdadeiro prazer é sermos nós a descobrir o sagrado que está dentro de cada ser humano. E dentro de cada ser não-humano também. Tudo é sagrado e deve ser respeitado como tal.
Nos dramatismos da religião católica, do sacrifico de Jesus Cristo por todos nós, da culpa de judeus, romanos, ou outros, fica-me a questão: se Deus tudo sabe, sabia também como tudo iria decorrer, por isso cada actor desempenhou exactamente o papel que lhe cabia, de Pilatos a Torquemada, nesse grande desígnio universal que todos se esqueceram de nos dizer qual é.
Por isso, sem guião e na base do improviso, tentarei desempenhar o meu papel o melhor possível, decidindo no sentido do bem, procurando respeitar tudo e todos. Só posso esperar que, quando chegar o momento do realizador gritar “Corta!”, eu possa descansar com a certeza de ter usado a verdade em cada uma das minhas palavras.
[Acho que excedi um pouco o âmbito deste blog com estas contemplações, mas a arte é também os seus frutos, as reflexões que gera e as ideias que desperta.]
Realização: Alberto Seixas Santos. Elenco: Rita Martins, Madalena Vitorino, Bia Gomes, Maria Inês Soares. Nacionalidade: Portugal, 2005. 16 min.
O meu “mea culpa” à Rita Martins por não ter ido ver o “Lavado em Lágrimas”. Desta feita vi-a em “A Rapariga da Mão Morta”, a curta de Alberto Seixas Santos que está a ser apresentada como complemento do filme dos irmãos Dardenne “L’Enfant”.
Não me apetece falar sobre o filme, sem história, sem caminho, sem ritmo e sem propósito. A interessante opção de som na cena final, onde apenas se ouvem os carros (ainda que a cena em si seja incompreensível) não compensa a péssima captação dos diálogos, mesmo apesar da fraca originalidade dos poucos que se conseguem entender. E depois há Madalena Vitorino numa debitação de palavras tão artificial como aquela mão falsa.
Felizmente há Rita Martins, de uma naturalidade desarmante, na agilidade com que integra a prótese nos seus gestos do dia-a-dia, na convicção das ilusões, nas palavras assumidas como suas, no olhar perdido à procura da Lua.
Realização: Giovanni Veronesi. Elenco: Carlo Verdone, Luciana Littizzetto, Silvio Muccino, Sergio Rubini, Margherita Buy, Jasmine Trinca, Rodolfo Corsato, Dino Abbrescia, Dario Bandiera, Luis Molteni, Sabrina Impacciatore, Anita Caprioli, Francesco Mandelli. Nacionalidade: Itália, 2005.
Sem grandes expectativas que de chegue ao nosso país, “Manuale d’Amore” foi um dos grandes êxitos de bilheteira do ano passado em Itália e Espanha. O argumento de Giovanni Veronesi e Ugo Chiti conta quatro histórias distintas, unidas entre si pelo tema comum do amor, aqui diferenciado em quatro relações (ou talvez se trate de apenas uma única relação em diferentes fases).
Tommaso (Silvio Muccino) apaixona-se pela bela Giulia (Jasmine Trinca, “La Meglio Gioventù”). À primeira vista, como deve ser. Mas Giulia não está interessada (também como deve ser). A embriaguez da sedução marca este momento. O primeiro encontro, o primeiro beijo, a primeira noite juntos, é o idílio do enamoramento.
Barbara (Margherita Buy) e Marco (Sergio Rubini) passam por um momento de impasse no seu casamento. O peso do tédio e do aborrecimento levam Barbara a tentar uma última alternativa para a reaproximação, e até a ideia de um filho como solução para o seu problema começa a ser conjecturada.
Ornella (Luciana Littizzetto) fica destroçada com a traição do seu marido. Querendo superar a situação com uma força superior a ela mesma, acaba por empreender uma luta contra todos os homens. Com a agravante de ela ser polícia de trânsito.
Goffredo (Carlo Verdone) é um pediatra de meia-idade, que se encontra magoado, confuso e só, após o abandono da sua mulher. Para superar este momento e caminhar no sentido da reconstrução, Goffredo recorre a um livro de auto-ajuda intitulado ‘Manuale d’Amore’.
“Manuale d’Amore” não é marcado por uma forte originalidade. Com efeito, associa entre si uma série de clichés com os quais todos facilmente nos podemos identificar. Mas é essa humildade e simplicidade que acabam por ser o elemento mais cativante deste filme. A paixão, a crise, a traição e o abandono são todas elas histórias normais, como tantas outras. Ridículas, dramáticas e irónicas, tal como a vida.
Ao contrapor momentos de grande carga emocional com outros extremamente cómicos, Giovanni Veronesi joga com as emoções do espectador, transmitindo a instabilidade emocional característica das relações amorosas. E apesar de um pequeno problema de ritmo, o realizador consegue, com alguma agilidade, unir estes quatro episódios, fazendo as personagens de cada história cruzarem-se suavemente com as das outras. Pena é que o recurso a comentários directos à câmara e à voz off se tenha quase apenas limitado à primeira história.
Do conjunto de interpretações as mais marcantes são, sem dúvida, a de Luciana Littizzetto no terceiro segmento e a de Carlo Verdone no último.
Talvez “Manuale d’Amore” pretendesse ser uma comédia romântica, mas o seu tom pessimista, apesar do humor tipicamente italiano, deixa uma certa sensação de desconforto. Apenas o primeiro momento parece conter algum optimismo, todo o restante filme está impregnado de um considerável desamor. E o tom irónico da comédia não ajuda a aliviar esse sentimento de condenação que parece marcar todas as relações descritas.
Da génese ao apocalipse, “Manuale d’Amore” atreve-se, ainda que com superficialidade, a decompor sentimentos. No final, confirma-se a frustração de, para malentendidos, ilusões, tragédias, romances eternos ou relações efémeras, não existirem manuais eficazes.
Sem regras nem leis, sem poder tirar exemplos dos outros ou mesmo do nosso próprio passado, cabe-nos a nós combater os medos, arriscando em cada nova experiência. E arriscar implica apostar tudo, deixando no bolso uma única certeza: de que o amor não é o fim, mas o processo (de crescimento, claro).
Realização: Michael Caton-Jones. Elenco: John Hurt, Hugh Dancy, Dominique Horwitz, Louis Mahoney, Nicola Walker, Steve Toussaint, David Gyasi, Susan Nalwoga, Victor Power, Jack Pierce, Musa Kasonka Jr., Kizito Ssentamu Kayiira, Claire-Hope Ashitey. Nacionalidade: Reino Unido / Alemanha, 2005.
Os dois filmes de Michael Caton-Jones actualmente em cartaz, “Shooting Dogs” e “Basic Instinct 2”, não podiam ser mais distintos, e espero sinceramente que ninguém ponha em dúvida que bilhete comprar. E quem ache que tendo visto o filme “Hotel Rwanda”, já viu tudo o que há para ver sobre o massacre étnico que decorreu naquele país africano na Primavera de 1994, fique a saber que há espaço suficiente para mais do que um filme sobre este tema.
Ruanda, Abril de 1994. A Escola Técnica Oficial de Kigali é gerida, há 10 anos, pelo Padre Christopher (John Hurt). Joe Connor (Hugh Dancy) é um jovem professor, idealista e ingénuo que foi para África para «fazer a diferença». Infelizmente a história tem mostrado que a herança colonial deixada em África pelos ocidentais fez diferença, sim, mas não no melhor sentido e o Ruanda é mais um exemplo disso.
Quando o presidente ruandês Habyarimana é morto, tem início uma guerra étnica entre a maioria Hutu e a minoria Tutsi, que resultou na matança - sobretudo com catanas - de 800.000 Tutsis entre Abril e Junho de 1994. Rapidamente a escola, que também alberga forças de manutenção de paz da ONU, se torna um refúgio para os Tutsis.
Baseado numa história verídica (o co-argumentista, David Belton, é jornalista da BBC e estava no Ruanda quando começou o massacre), mas com personagens ficcionais, “Shooting Dogs” equilibra bem os eventos reais - foi filmado nos verdadeiros locais e com muitos sobreviventes desta tragédia como figurantes e técnicos - e o drama de um padre católico cuja fé é posta à prova pela hipocrisia dos políticos Hutu e por toda aquela carnificina; de um dedicado professor que procura em si a coragem de ficar e lutar ao lado dos seus alunos; e de um oficial da ONU, o Capitão Charles Delon (Dominique Horwitz), impedido de interferir no conflito, ironicamente limitado a matar os cães que comem os cadáveres que cercam a escola para prevenir um risco de saúde pública.
Apesar do filme ser apresentado do ponto de vista de estrangeiros, a sua convicção, compaixão e força não surgem diminuídos. E da inevitável comparação com “Hotel Rwanda” atrevo-me a dizer que “Shooting Dogs” sai a ganhar. Condenado a ficar na sombra do primeiro, dado o timing de lançamento e a projecção dos Oscar, este filme é mais poderoso do ponto de vista do relato histórico. É também mais duro e Caton-Jones revela mais coragem que Terry George ao abordar o tema da raça como motivo da indiferença internacional, quando Rachel (Nicola Walker), a jornalista da BBC, fala de como se comoveu com o massacre do Kosovo, pela identificação com aquelas pessoas, enquanto que ali permanecia indiferente, mesmo contra a sua vontade, porque «são apenas africanos mortos». É a existência de europeus na escola que lhe dá o motivo para fazer uma reportagem.
O mais marcante deste filme é o vazio deixado pelo resto do mundo, a grande apatia internacional. As imagens de arquivo da porta voz do Departamento de Estado dos EUA debatendo a diferença semântica entre ‘actos de genocídio’ e ‘genocídio’, sendo que o último obrigaria a comunidade internacional a intervir continua a fazer-me sentir o estômago às voltas.
“Shooting Dogs” recorre à solução fácil, mas eficaz, de confrontar o milagre da vida com a tragédia da chacina que rodeia esse nascimento. E é um filme pejado de referências religiosas e de dúvidas morais. Mas, abstraindo-nos dos conceitos mais fechados de ‘Deus’, é de amor que se trata, essa força comum que une todos os seres. De uma forma honesta e pungente, “Shooting Dogs” faz um retrato tocante sobre a humanidade e sobre a assustadora capacidade do homem de infligir, por puro medo, a maior das crueldades sobre o seu irmão.
Talvez o grito de África acorde em nós algum sentimento de culpa, que surge camuflado no altruísmo de dar algo em troca. Mas este é um filme que todos os ruandeses quereriam que o mundo visse. Devemos-lhes, pelo menos, isso. Ainda que nos custe algumas lágrimas.
Para saber mais:
http://www.shootingdogsfilm.blogspot.com
http://rwandansurvivors.blogspot.com
CITAÇÕES:
“We are not here to inforce peace, but to monitor it.”
DOMINIQUE HORWITZ (Capitaine Charles Delon)
“Over here they’re just dead Africans... What an awful thing to say!”
NICOLA WALKER (Rachel)
“Does He love everyone?”
CLAIRE-HOPE ASHITEY (Marie)
“Joe - How much pain can a human being endure? If you feel enough pain, does everything shut down before you die?
Christopher - God only knows.
Joe - Maybe you should ask Him... If He’s still around...”
HUGH DANCY (Joe Connor) e JOHN HURT (Christopher)
“Joe - Where is God in the middle of all this, in the middle of all this suffering?
Christopher - He’s right here among this people. Suffering.”
HUGH DANCY (Joe Connor) e JOHN HURT (Christopher)
“Find fulfillment in everything.”
JOHN HURT (Christopher)
“30 years in this bloody continent. The only thing that never changed was hope. We always had hope. Now... I think we’re running dry.”
JOHN HURT (Christopher)
“Even now, when I look into your eyes the only feeling I have inside is... love.”
JOHN HURT (Christopher)
“We were fortunate. This time we have been given, we must use it well.”
CLAIRE-HOPE ASHITEY (Marie)
Realização: Clément Virgo. Elenco: Lauren Lee Smith, Eric Balfour, Richard Chevolleau, Don Francks, Polly Shannon, Michael Facciolo, Kristin Lehman, Nicola Lipman, Kate Lynch. Nacionalidade: Canadá, 2005.
Leila (Lauren Lee Smith) vive segundo os seus instintos. O sexo é, para ela, animal, mas é também uma fonte de poder sobre os homens. Leila não abdica do controlo na sua própria vida, mas o iminente divórcio dos seus pais vem abalar o extremo oposto em que ela se encontra, confirmando o seu descrédito na durabilidade das relações.
Nesse Verão em Toronto, Leila conhece David (Eric Balfour). A sedução é fácil e satisfatória. Leila sabe que quer David, e que David a quer, mas à medida que começam a perceber que existem sentimentos a sustentar o seu desejo um pelo outro, o seu analfabetismo emocional faz-se notar. Pouco articulados na linguagem do amor, Leila e David parecem apenas conseguir comunicar através dos seus corpos.
Sexo é comunicação e, cada vez mais, nas relações modernas, é a única linguagem utilizada. Conhecer o outro, entrar na sua intimidade e partilhar dela, dá trabalho, e também medo. Face a esse medo e à perturbação que a ligação emocional provoca no normal funcionamento da sua vida, Leila recua. Mas fá-lo tarde demais. A vida segura que construiu começa a desmoronar-se em torno desse sentimento recusado. Leila começa a questionar-se sobre se é verdadeiramente independente, ou apenas tem medo de sentir. E acabará por entender que o desejo pode tapar a possibilidade de amor e que uma das condições essenciais para ser feliz é tornar-se vulnerável.
Baseado no livro de Tamara Faith Berger, que escreveu também o argumento em conjunto com o seu marido e realizador Clément Virgo, “Lie With Me” é um filme sexualmente explícito, mas longe de ser chocante, feito com realismo e sem vergonha (a entrega dos actores é notória), sobre o dilema que se estabelece entre o sexo sem contexto e o compromisso emocional, e sobre a procura de uma solução em que um e outro vivam, e onde a espontaneidade e a profundidade se misturem.
“Lie With Me” contrasta cenas sexuais intensas com detalhes de vidas solitárias, uma duplicidade que se reflecte no próprio título: entre o deitarem-se juntos (‘lie with me’) e o viverem juntos uma mesma mentira (‘lie with me’), pode esconder-se aquilo que todos - mesmo o que se negam a aceitá-lo - andam à procura: o amor.
Mas sexo não é amor. E não é amor aquilo que Leila e David começam por fazer. No entanto, o abismo entre um e outro é bem menos acentuado do que muitas das teorias pseudo-modernas nos querem fazer crer.
Fugimos de sentimentos só para ver se eles correm mais do que nós, mas querendo secretamente que eles ganhem, e nos apanhem já sem fôlego para lhes resistirmos.
CITAÇÕES:
“Leila - I love you and I don’t know what to do with it.(...)
David - I don’t want to be with you.”
LAUREN LEE SMITH (Leila) e ERIC BALFOUR (David)
“When I stop fucking looking for his love, then I stop running.”
LAUREN LEE SMITH (Leila)
Realização: John Hillcoat. Elenco: Guy Pearce, Ray Winstone, Emily Watson, John Hurt, Richard Wilson, Danny Huston, Tom Budge, David Wenham, Robert Morgan, Boris Brkic, Iain Gardiner. Nacionalidade: Austrália / Reino Unido, 2005.
O gang dos irmãos Burns é procurado pela violação e o violento assassinato de uma mulher grávida. Depois de um tiroteio, dois dos irmãos são detidos, Charlie (Guy Pearce) e Mikey (Richard Wilson), o mais novo. O capitão Stanley (Ray Winstone), deixa Charlie em liberdade na condição de ele matar o seu irmão mais velho, Arthur Danny Huston, o cabecilha do gang. Para garantir este acordo, Stanley mantém Mikey preso e Charlie tem 9 dias para cumprir o acordo. Caso contrário, Mikey será enforcado.
O argumento do músico Nick Cave, numa linguagem própria mas inteiramente credível, faz uso de uma terra austera e sem lei - a da Austrália de 1880s - para contar a história de dois homens, cada um com o seu dilema. O arco evolutivo de Charlie e de Stanley, o seu antagonista, movem-se paralelamente, enquanto o primeiro vive com introspecção o dilema de escolher entre o irmão mais novo e irmão mais velho (entre a inocência e a crueldade), Stanley oscila entre a lei e um código de justiça que ele julga mais eficaz. Ambos agem segundo a crença de um poder moral mais elevado, mas ambos se mostram incapazes de prever as consequências dos seus actos.
Stanley (Ray Winstone), cuja decisão choca os restantes guardas, ansiosos por vingança, e em especial o seu superior Eden Fletcher (David Wenham), um sádico burocrata que representa toda a dureza do colonialismo, tenta domesticar uma terra que ele considera selvagem, ao mesmo tempo que tenta proteger a sua mulher Martha (Emily Watson) de toda aquela agrura. Na sua aparente fragilidade, Martha representa a força moral e a ilusão da civilização, tranquila na sua elegante casa colonial, com o seu jardim no meio de uma paisagem desértica.
“The Proposition” é um filme violento e brutal, mas imensamente poético, sobre escolhas, sobre amor e traição, sobre vingança e redenção. A sua intensidade reside sobretudo nas suas personagens complexas e ambíguas, cheias de cinzentos e imprevisíveis - que permitem todas elas grandes interpretações. Há uma iminente sensação de tragédia, quase épica pela dimensão das paisagens, por um céu vasto e vazio. O calor e o suor, a sujidade e o pó, as moscas e as árvores mortas, enchem este filme de pessimismo e desespero.
O design de produção de Chris Kennedy e a fabulosa fotografia do francês Benoit Delhomme dão um enorme poder emocional às impressionantes paisagens do interior australiano. A música de Nick Cave e Warren Ellis passeia-se por “The Proposition” como um fantasma - em especial o tema “The Rider” - impregnando este filme de uma força que restitui ao Western o seu antigo misticismo.
Mais um belo cartaz:
CITAÇÕES:
“What I hope the film generates at the end are periods of intense violence followed by periods of sadness and longing and to me that's something that's reflected in Australia and the Australian Outback.”
NICK CAVE
THE RIDER
Nick Cave
'When?' said the moon to the stars in the sky
'Soon' said the wind that followed them all
'Who?' said the cloud that started to cry
'Me' said the rider as dry as a bone
'How?' said the sun that melted the ground
and 'Why?' said the river that refused to run
and 'Where?' said the thunder without a sound
'Here' said the rider and took up his gun
'No' said the stars to the moon in the sky
'No' said the trees that started to moan
'No' said the dust that blunted its eyes
'Yes' said the rider as white as a bone
'No' said the moon that rose from his sleep
'No' said the cry of the dying sun
'No' said the planet as it started to weep
'Yes' said the rider and laid down his gun
T.O.: Moartea domnului Lazarescu. Realização: Cristi Puiu. Elenco: Ion Fiscuteanu, Luminita Gheorghiu, Gabriel Spahieu, Doru Ana, Dana Dogaru, Florin Zamfirescu, Clara Voda, Adrian Titieni, Mihai Bratila, Monica Barladeanu. Nacionalidade: Roménia, 2005.
Um viúvo de 63 anos (Ion Fiscuteanu) vive com os seus gatos num pequeno e sujo apartamento em Bucareste. Uma noite, as dores de estômago e de cabeça agravam-se (para além dos normais efeitos do excesso de bebida) e decide chamar uma ambulância. Enquanto espera, pede uns comprimidos aos vizinhos e fala com a sua irmã, lamentando-se da ausência da sua única filha que vive no Canadá. Com a chegada da ambulância e da paramédica Mioara (Luminita Gheorghiu) tem início uma epopeia pelo sistema de saúde romeno, num duro contraste entre o cuidado e a indiferença.
O título deste filme não deixa grandes dúvidas quanto ao seu desfecho. Cristi Puiu consegue gerir esse aspecto sem prejudicar em nenhum momento o interesse do filme, fazendo um uso inteligente e equilibrado do humor negro. Filmado num estilo realista e muito próximo do documental este drama humano faz um uso exímio do ritmo, de tal forma que o cansaço e exasperação, a revolta contra a ineficácia e a burocracia, são também nossos.
À medida que a noite avança e o dia começa a despontar, a saúde de Lazarescu deteriora-se diante dos nossos olhos, mas a verdadeira protagonista deste filme é Mioara, é a ela que vemos mudar, num arco consistente e credível, do profissionalismo mais frio ao carinho e protecção pelo seu paciente. Ion Fiscuteanu como Lazarescu e Luminita Gheorghiu como Mioara estão excepcionais, revelando os frutos das três semanas de ensaios impostas por Puiu.
“The Death of Mr.Lazarescu” é o primeiro de uma proposta série de seis filmes - Six Stories from the Bucharest Suburbs - todos eles sobre diversas formas de amor. Aqui fala-se do amor pelo humano. Dois improváveis heróis, numa odisseia banal, mas nem por isso menos valorosa, mostram-nos que a eficácia profissional raramente pode ser descolada da eficácia emocional.
Realização: Albertina Carri. Elenco: Cristina Banegas, Daniel Fanego, María Abadi, Lucas Escariz, Julieta Zylberberg, Damián Ramonda. Nacionalidade: Argentina / França, 2005.
À frente de uma família argentina de classe alta, tipicamente matriarcal, está Lucía (Cristina Banegas), superficial e controladora, tentando impor a sua bem pensada ordem em tudo o que a rodeia, num claro contraste com um pai quase autista de tão ausente (Daniel Fanego). Mas há algo que foge ao controlo de Lucía, quase como símbolo da podridão de um sistema baseado nas aparências - a relação incestuosa entre os seus filhos, Meme (María Abadi) e Jere (Lucas Escáriz).
Ezequiel (Damián Ramonda), o irmão mais velho, chega de Barcelona com Montse (Julieta Zylberberg) para se casar, num casamento teatralizado apenas para a sua família. Numa das cenas mais fortes deste filme, é Montse quem evidencia o mal que se gera dentro de um organismo pouco saudável, que impõe aos outros a sua vontade para camuflar a sua própria fragilidade.
A utilização de uma situação extrema para questionar as convenções e tradições deste conjunto de pessoas afasta o espectador da possibilidade de identificação. E, apesar dos esforços de Cristina Banegas (cuja cena final é demonstrativa do seu poder), a crítica social acaba por cair na caricatura, um pouco à semelhança de Norma Aleandro em “Señora Beba”.
É só quando se afasta desse objectivo, que o filme de Albertina Carri (o seu documentário “Los Rubios” fez parte da selecção do IndieLISBOA do ano passado) mostra mais força. Sem nunca apresentar um ponto de vista moralizador, sem explicações, justificações ou críticas, e inclusivamente com uma certa cumplicidade. Carri capitaliza nas interpretações naturais de Abadi e Escáriz; não fosse a condenação social e poderíamos até ver este amor e este desejo como algo puro. Mas, por outro lado, Carri perde a oportunidade de tirar partido do confronto com a personagem do irmão mais velho.
A câmara de Guillermo Nieto move-se pelos corredores da casa, descobrindo os seus meandros numa atmosfera opressiva. Sabemos de antemão e sem surpresa que a tensão acumulada caminhará para um inevitável clímax de tragédia grega, cuja força é potenciada pelo desajuste com a contenção emotiva que marca todo o restante filme.
Por vezes, o que está de errado na fotografia é simplesmente o lado de cá, o humano.
A XIII edição dos CAMINHOS DO CINEMA PORTUGUÊS que teve lugar em Coimbra, premiou os seguintes filmes:
Mais informações em www.caminhos.info
Realização: Matthew Barney. Elenco: Matthew Barney, Björk, Mayumi Miyata, Shiro Nomura, Tomoyuki Ogawa, Sosui Oshima. Nacionalidade: EUA / Japão, 2005.
“Drawing Restraint 9” não é um filme, e antes que se criem expectativas de tal, é melhor deixá-lo claro desde início. “Drawing Restraint 9” é um objecto de arte, que usa o cinema como veículo, tirando partido da imagem e do som. Só assim se pode entender a ausência de enredo, de ritmo e de personagens.
E, no entanto, é um objecto imensamente belo.
“Drawing Restraint 9” começa com uma mulher embrulhando um fóssil, numa dança coreografada de mãos e papéis. O embrulhos são selados com um símbolo oval atravessado por uma barra (a plenitude restringida por uma barreira). Acompanhamos depois dois visitantes ocidentais (Barney e Björk) que, separadamente, são levados para bordo do baleeiro japonês Nisshin Maru. Os visitantes são lavados e vestidos com fatos feitos de peles de animais na preparação de uma cerimónia de casamento. No convés do navio, a tripulação ocupa-se com o molde de uma piscina de vaselina - um molde onde se repete novamente o símbolo oval - em sinal de todo o esforço que está implícito no trabalho criativo.
Após a cerimónia do chá (onde se proferem as únicas frases de diálogo), um ritual de partilha feito de utensílios surpreendentemente orgânicos, ocorre uma tempestade que provoca o vazar da vaselina. O líquido viscoso entra nas cabines inferiores, inundando-as. Os visitantes juntam-se num ritual de amor-morte, onde a mutilação simboliza a mutação provocada pelo amor, a transformação permitida pela libertação das barreiras exteriores para que as emoções se unam. Enquanto isso, Björk canta “from the moment of commitment, nature conspires to help you”.
Ao longo de mais de duas lentas horas, o realizador do ciclo “Cremaster” (na sua primeira colaboração com a sua companheira Björk, também responsável pela banda sonora) cria, com imagens de tirar a respiração, um ambiente de opressão onde apenas se consegue respirar quando as barreiras que sustêm a forma são derrubadas, e a forma libertada assume a sua verdadeira essência emocional.
“Drawing Restraint 9” é uma experiência sobretudo sensorial, de um forte poder imagético, usando a baía de Nagasaki como pano de fundo. Um produto de difícil digestão, profundamente trabalhado, com algumas poderosas - mas surreais - ideias. Mas, como cinema, é bem mais interessante de olhar do que de ver.