T.O.: Daremo shiranai. Realização: Hirokazu Kore-eda. Elenco: Yûya Yagira, Ayu Kitaura, Hiei Kimura, Momoko Shimizu, Hanae Kan, You. Nacionalidade: Japão, 2004.
Keiko Fukushima (You) muda-se para um novo apartamento alugado e apresenta o seu filho Akira (Yûya Yagira), de 12 anos, ao senhorio, “esquecendo-se” de mencionar qualquer um dos seus outros três filhos: Kyoko (Ayu Kitaura) de 10 anos, Shigeru (Hiei Kimura) de 7 e Yuki (Momoko Shimizu) de 4. Para que se continue a não saber da sua existência, sob pena de serem expulsos do apartamento, Keiko impõe as regras, como se de um jogo se tratasse: não fazer barulho e não sair (excepção feita a Akira, que está encarregue de fazer as compras).
Nenhuma destas crianças vai à escola e não têm amigos. Sem tempo nem liberdade para serem crianças, mal conseguem alimentar os seus sonhos de tocar piano (Kyoko) ou de jogar basebol (Akira). Para a mãe, eles são úteis (simples bagagem, e não só metafórica), não só no sentido prático de fazerem todas as tarefas em casa (das limpezas ao pagamento das contas), mas (e talvez sobretudo) de alimentarem a sua sede de amor e de atenções. É esse mesmo romantismo que leva Keiko a abandoná-los, quando crê ter encontrado um homem que cuidará dela.
Keiko oferece presentes aos filhos, sem pedir desculpa ou explicar-se. Quando é confrontada por Akira com o seu comportamento negligente, apenas diz: “Eu tenho direito de ser feliz”. Mesmo antes de se ir embora, Keiko é já uma mãe ausente, e quando a única coisa que deixa aos filhos é dinheiro para se manterem por uns tempos, a vida deles não se altera de um modo significativo. Até porque acreditam que, mais cedo ou mais tarde, a mãe acabará por regressar. Quando isso não acontece, a sua ansiedade e apreensão aumentam.
Os adultos de “Ninguém Sabe” comportam-se como crianças (mimados, irresponsáveis, egoístas), enquanto paradoxalmente as crianças agem como adultos. É quando este ciclo é rompido, quando Akira tenta finalmente ser a criança que é, arranjar amigos e divertir-se, que o mundo (apesar de tudo) seguro que estas quatro crianças conhecem começa a desmoronar-se.
A arrumação, a limpeza, a própria aparência física dos jovens, vai-se tragicamente arruinando, e assistimos a quatro vidas em declínio, antes mesmo de terem começado. Na ausência da mãe, as visitas ao mundo lá fora tornam-se os momentos de maior felicidade, e os universos de Akira, Kyoko, Shigeru e Yuki começam a expandir-se. Mas tal como sucedeu no Big Bang, muita coisa foi criada, mas muita outra foi destruída.
Kore-eda capta toda a intimidade da rotina dos irmãos dentro daquele pequeno apartamento, mas sem qualquer claustrofobia. O mesmo não se pode dizer dos sentimentos, quase totalmente contidos, sem explosões ou confrontos, mas onde se lê o profundo amor que os une. Kore-eda opta pela evidência através do contraste, como sucede no início do filme, em que uma situação horrível se mistura com o divertimento característico das crianças, ou como um jogo de basebol reflecte a total ausência e necessidade de uma figura protectora.
Este é um filme de emoções intensas, onde paira a iminente sensação de calamidade. Apesar da coragem, da resistência, e da capacidade de (apesar de tudo, ou por causa de tudo) estas quatro crianças conseguirem vencer o desespero com algum humor, a indiferença das grandes sociedades impessoais continua a ser desarmante e incontornável.
Baseando-se livremente num incidente que ocorreu em 1988 em Nishi-Sugamo, quando quatro crianças foram abandonados pela mãe e deixadas sozinhas durante 6 meses, Kore-eda rejeita qualquer abordagem sociológica ao tema, tratando as emoções dos quatro jovens com uma subtil sensibilidade. Quase todos os acontecimentos são mostrados do ponto de vista de Akira, e esta subjectividade torna tudo ainda mais duro. A mãe nunca é mostrada como um monstro, porque não é assim que os filhos a vêem. Para garantir espontaneidade nas representações, Kore-eda não deu o guião aos seus jovens actores, limitando-se (?) a dar-lhes as falas e explicar-lhes o que pretendia. O ambiente criado é dolorosamente real, e quase se pode sentir o cheiro dos restos de comida e sujidade acumulados no apartamento. As interpretações das crianças são, sem excepção, isentas de falsidade, mas o poder do olhar de Yûya Yagira vem justificar o prémio de melhor interpretação masculina na edição de 2004 do Festival de Cannes.
“Ninguém Sabe” foi filmado durante um ano, o que facilitou a sincronia com a cronologia do filme, e permitiu não só filmar as mudanças das estações, mas também o crescimento das crianças (facto apontado num dos momentos mais dramáticos do filme). A atenção ao detalhe é também evidente, em especial o vermelho do verniz (recurso utilizado com grande inteligência como marca da passagem do tempo), da bola, do desenho da mãe, das flores, como símbolo do amor que é necessário para um crescimento / florescimento saudável. Um amor que jamais poderá ser enviado por correio com uma nota apensa.
A melancolia destas crianças é dolorosa e quase insuportável. A sua dureza perante os mais violentos acontecimentos chega a ser incompreensível. E há uma parte muito forte que nos envolve nesta história, e que se chama culpa colectiva. Fomos nós que os abandonámos à sua sorte, nós o sistema de apoio social, nós os vizinhos que ignoram os abusos, nós os pais e mães que não merecem esse nome.
Este é um dos filmes mais tristes que já vi, mas de uma beleza que só é possível através de um olhar inocente. E o que acontece depois de se perder uma infância à qual nunca se teve direito?
Ninguém sabe.
Realização: James McTeigue. Elenco: Natalie Portman, Hugo Weaving, Stephen Rea, Stephen Fry, John Hurt, Tim Pigott-Smith, Rupert Graves, Roger Allam, Ben Miles, Sinéad Cusack. Nacionalidade: EUA / Alemanha, 2005.
A 5 de Novembro de 1605, Guy Fawkes foi detido num túnel debaixo do Parlamento britânico na posse de 36 barris de pólvora destinados a derrubar a tirania do Rei James I e colocar um rei católico no trono. Fawkes e os seus colaboradores foram enforcados.
Em 1982, Alan Moore, em colaboração com o artista gráfico David Lloyd, escreveu a banda desenhada “V For Vendetta”, um velado (ou nem tanto) ataque às políticas conservadoras de Margaret Thatcher e um grito pela liberdade e pela justiça.
Em 2005, o argumento dos irmãos Andy e Larry Wachowski (“Matrix”) (adaptação largamente criticada pelo próprio Alan Moore), nas mãos do estreante James McTeigue (assistente de realização em “Matrix”), manteve a Inglaterra mas actualizou-a para um futuro próximo, onde um governo conservador e totalitário, liderado pelo maníaco Chanceler Sutler (John Hurt), domina a população usando o medo como arma (isto é ficção, certo?!), eliminando tudo o que é diferente.
Evey (Natalie Portman), filha de radicais anti-governamentais, trabalha no departamento de correspondência da única estação de televisão existente. Uma noite, depois do recolher obrigatório, Evey é detida pela segurança governamental (“Fingers”) e é salva por um vigilante mascarado, de seu nome V. V (Hugo Weaving) é um revolucionário, que usa o exemplo de Guy Fawkes (e a sua máscara), na sua luta por libertar a Inglaterra da corrupção, da crueldade e das mentiras do governo. Evey vê-se apanhada no meio do plano de vingança de V, que pretende fazer explodir as Houses of Parliament no 5 de Novembro seguinte. Um diligente investigador do governo Finch (Stephen Rea) tenta evitar o pior.
V usa um vocabulário sofisticado (a aliteração usada numa das primeiras falas é desconcertante), ao mesmo tempo que brade armas brancas com uma elegância oriental. Num misto de loucura, melancolia e teatralidade (a la Fantasma da Ópera) faz a constante evocação de Edmond Dantes, o Conde de Monte Cristo, e à sua sede de vingança. No fundo, V é um assassino que justifica a sua violência com o fim a que se destina. E não deixa de ser controverso que a lógica maquiavélica possa ser aqui usada para justificar a superioridade de um tipo de terrorismo sobre outro.
Polémicas aparte, este filme é um regalo, na sua mistura de mito e história com teoria da conspiração, e com claras referências ao universo de “1984” de Orwell (cuja adaptação ao cinema em 1984 por Michael Radford contou também com a participação de John Hurt, desta feita no papel do oprimido Winston Smith). Novamente se questiona de que direitos o povo está disposto a abdicar pela promessa de segurança? qual a melhor forma de um governo capitalizar o medo para seu próprio benefício? haverá causas pela quais vale a pena lutar? e morrer?
Ironicamente, o grande vilão deste filme acaba por ser, nem tanto o Chanceler ou o que ele representa, mas sim a grande massa de população que se torna conivente com sistemas deste tipo, a maioria das vezes por simples preguiça. E eles são todos nós (bem, talvez exceptuando uns quantos estudantes franceses...). E não deixa de ser refrescante que uma multidão indefinida e sem feições se transforme num conjunto de individualidades.
A história de “V For Vendetta” é um puzzle que se vai desvendando em pistas sucessivas e que conta com um conjunto de boas interpretações. Natalie Portman apresenta uma transformação impressionante e consistente; e Hugo Weaving consegue dotar uma personagem mascarada de grande humanidade, quer através da sua poderosa voz, quer dos movimentos corporais. Aliás, “V For Vendetta” tem o mérito de, no meio de grandes efeitos visuais, nunca se esquecer da base humana. Nos secundários, estão três sólidos pesos-pesados: Stephen Rea, John Hurt e Stephen Fry.
Este filme é ambíguo, dramático e intenso. Vale a pena ver. E pensar sobre. E no ambiente escuro e opressivo da fotografia de Adrian Biddle, só apetece ouvir (e dançar!) “Cry Me a River”.
CITAÇÕES:
“Remember, remember, the fifth of November, The gunpowder treason and plot. I know of no reason why gunpowder treason should ever be forgot.”
HUGO WEAVING (V)
“Voilà! In view, a humble vaudevillian veteran, cast vicariously as both victim and villain by the vicissitudes of Fate. This visage, no mere veneer of vanity, is it vestige of the vox populi, now vacant, vanished, as the once vital voice of the verisimilitude now venerates what they once vilified. However, this valorous visitation of a by-gone vexation, stands vivified, and has vowed to vanquish these venal and virulent vermin vanguarding vice and vouchsafing the violently vicious and voracious violation of volition. The only verdict is vengeance; a vendetta, held as a votive, not in vain, for the value and veracity of such shall one day vindicate the vigilant and the virtuous. Verily, this vichyssoise of verbiage veers most verbose vis-à-vis an introduction, and so it is my very good honor to meet you and you may call me V.”
HUGO WEAVING (V)
“Beneath this mask there is more than flesh. There is an idea, Mr. Creedy, and ideas are bulletproof.”
HUGO WEAVING (V)
“People should not be afraid of their governments, governments should be afraid of their people.”
HUGO WEAVING (V)
T.O.: Saam Gaang Yi. Realização: Fruit Chan (“Dumplings”), Park Chan-Wook (“Cut”), Miike Takashi (“Box”). Elenco: “Dumplings” - Miriam Yeung, Bai Ling, Tony Ka-Fai Leung. “Cut” - Lee Byung-Hun, Lim Won-Hee, Gang Hye-Jung. “Box” - Kyoko Hasegawa, Atsuro Watabe. Nacionalidade: Hong Kong / Coreia do Sul / Japão, 2004.
Talvez seja difícil de acreditar, mas é possível que um filme sádico, perverso, bizarro, extremamente gore, com três histórias incómodas e perturbantes sobre a inveja e a vingança, possa levantar importantes questões existenciais como: até onde conseguimos levar o nosso culto à juventude e à beleza? até onde estamos dispostos a comprometer a nossa “bondade” para proteger os que amamos? se formos responsáveis pelo sofrimento de outros devemos carregar com esse peso o resto da nossa vida?
É o que acontece com “3... Extremos”. Sem um claro fio de ligação, reúnem-se aqui três histórias de três realizadores asiáticos, com o poder de despertar um conjunto de emoções de difícil digestão (os de estômago sensível nem vale a pena tentarem).
“Dumplings”, do chinês Fruit Chan, é a mais extrema de todas e conta a história de uma já-não-tão-jovem actriz (Miriam Yeung) que, para reconquistar o seu marido, faz um pacto faustiano com uma cozinheira (Bai Ling), cujos bolos de massa cozida são famosos. Esta é uma versão de uma longa-metragem, com um fim distinto, cuja ideia grotesca (os bolos... acho que tão cedo não consigo ir jantar a um chinês...) é ampliada pela fotografia de Christopher Doyle (“2046” de Wong Kar Wai).
“Cut” de Park Chan-Wook (realizador de “Oldboy”, 2003) é a melhor de todas. Um realizador (Lee Byung-Hun) fica, juntamente com a sua mulher, à mercê dos delírios de um figurante (Lim Won-Hee) que, invejoso do sucesso profissional e pessoal de Ryu, o obriga a fazer uma escolha que poderá comprometer não só a sua vida como o seu sistema de valores. O uso da sala fechada acrescenta tensão à diabólica maquinação, onde a luta psicológica de um homem contra si próprio é acompanhada de humilhação e tortura.
A última (neste caso, “last” e “the least”), “Box”, do realizador de “Uma Chamada Perdida” (2003), Miike Takashi, fala, sem muita novidade, da culpa. Uma jovem escritora (Kyoko Hasegawa) tem pesadelos que incluem ser enterrada viva e que estão ligados a uma dura história de infância. Belas e hipnotizantes imagens de neve decoram este conto de inveja e redenção.
Quando saio de um filme destes não posso evitar pensar que tipo de mentes estranhas concebem estas histórias. E que mentes são estas que se dispõem a vê-las?
Realização: Tiago Guedes e Frederico Serra. Elenco: Adriano Luz, Manuela Couto, Sara Carinhas, Afonso Pimentel, João Santos, José Pinto, João Pedro Vaz, Elisa Lisboa, Filipe Duarte, Gonçalo Waddington, Maria d'Aires, Miguel Borges. Nacionalidade: Portugal, 2006.
Já nem me recordo do último filme português que vi... (deixei passar o “Alice”...), mas deixei-me seduzir pelo bem montado trailer de “Coisa Ruim”. Eu não esperava exactamente um filme de terror, mas ser filme de abertura de um Fantasporto traz, certamente, alguma credibilidade e expectativa. Infelizmente, como um daqueles engates frustrados, a primeira impressão não sobreviveu a um olhar mais atento. E se, como eu, ouvirem qualquer referência que se atreva a comparar este filme com “The Village” (M. Night Shyamalan, 2004) ou o excelente “Shallow Grave” (Danny Boyle, 1994), por favor não liguem.
“Coisa Ruim” começa com um exorcismo, apresentando-nos a personagem mais importante - o Diabo. Xavier (Adriano Luz), um biólogo, muda-se de Lisboa com a mulher (Manuela Couto) e os filhos (Sara Carinhas, Afonso Pimentel e João Santos) para uma antiga casa de família no interior do país. Numa aldeia cheia de lendas, esta casa carrega consigo um passado que se vai fazendo notar em torno dos seus novos habitantes.
Seia e Torroselo foram locais de filmagem muito bem escolhidos, o Portugal profundo onde se guardam as mais velhas tradições e superstições. A claustrofobia de um bosque cerrado também é bem aproveitada. O mesmo se pode dizer da casa assombrada, com todo o potencial para causar calafrios, desde o ranger de madeiras aos recantos escuros. Os actores estão, globalmente, bastante bem, apesar de terem que trabalhar com personagens unidimensionais e com soluções que roçam o despropósito (tal é o caso dos avanços menos próprios da personagem de Afonso Pimentel, ficando-se sem perceber se são ou não fundamentados nalgum segredo, neste caso particular a insinuação requer confirmação sob pena de perder todo o sentido).
A fotografia de Victor Estevão é bastante agradável em termos de texturas e há planos realmente muito bem feitos. Aliás, a (pouca) tensão deste filme reside, única e exclusivamente, na forma como está filmado. A montagem de Pedro Ribeiro, no entanto, faz perder muitos dos momentos mais fortes (na primeira visão de um espectro nem me dei conta do que se tinha passado, tal foi a rapidez com que o filme foi cortado). Já para não falar da música de Jorge C. que poderia ter capitalizado muito mais este filme. Eu nem sou dos que defende que o som deve monopolizar os efeitos emocionais, mas não usá-lo de todo, ou usá-lo mal pode ser um pecado tão grave como o uso excessivo. É o que sucede aqui. O silêncio é tão pouco perturbante como o som que cresce e morre antes sequer de nos ter feito suster a respiração.
A veia jornalística do argumentista Rodrigo Guedes de Carvalho é evidente no trabalho de investigação das superstições que assolam o velho Portugal. Mas concentrá-las todas, de repente, numa mesma aldeia não só retira credibilidade à lenda que marca o filme, como a debitação de cada uma delas soa a lição escolar, sem o mínimo de naturalidade. Apenas para o fim, no cúmulo do desespero, aquelas personagens começam a falar como pessoas reais. Até lá, são elas mesmas uma assombração.
Tive pena que este filme não me tivesse incomodado nem um pouco, não me tivesse feito mexer na cadeira, obrigando o coração a esperar pelo momento seguinte, que não me tivesse feito sentir o peso do receio daquilo que não se explica. Mas se calhar é só o meu mau feitio. Isso ou o ter ficado totalmente insensível depois de ver o perturbante e duríssimo “3... Extremos”.
Ainda assim, se pensar muito, e aparte o declarado moralismo de que as nossas vidas actuais se escondem por trás de “lendas” que nós próprios criamos para nos consolarmos, consigo encontrar uma ideia importante. O desconhecido e o diferente sempre foram e serão motivo de desconfianças. O que uns respondem com superstições, outros respondem com cepticismo. Mas a explicação talvez resida a meio caminho - da mesma forma que a aceitação, que mais do que compreensão é respeito.
T.O.: Fragile. Realização: Jaume Balagueró. Elenco: Calista Flockhart, Yasmin Murphy, Richard Roxburgh, Elena Anaya, Gemma Jones, Colin McFarlane, Michael Pennington, Daniel Ortiz, Susie Trayling. Nacionalidade: Espanha, 2005.
O hospital de crianças de Mercy Falls, na Ilha de Wight (Reino Unido) está prestes a ser encerrado. Mas devido a um grande acidente que motiva a falta de camas disponíveis, algumas crianças ainda se encontram em Mercy Falls aguardando a transferência. Entretanto, uma das crianças aparece com a perna partida sem se perceber como, ao mesmo tempo que Maggie (Yasmin Murphy), uma outra criança, afirma que a culpa é de Charlotte, uma menina mecânica que supostamente vive no 2º andar (fechado há cerca de 40 anos) e que mais ninguém acredita existir. Amy (Calista Flockhart), uma enfermeira americana, vem de Londres designada para o turno da noite e estabelece uma forte empatia com Maggie. A imaterial presença de Charlotte vai-se fazendo notar cada vez mais e com maior agressividade, e Amy assume a tarefa de proteger estas crianças.
A premissa da casa assombrada é velha, e Balagueró não traz nada de novo com esta história. A personagem de Amy é fracamente trabalhada, o contexto dos seus demónios passados é incompreensível e a representação de Calista Flockhart (eternamente marcada pela personagem Ally McBeal) falha nas partes mais emocionais, sendo incapaz de motivar particular simpatia. O mesmo não acontecendo com Yasmin Murphy no papel de Maggie, que está fantástica.
Balagueró faz um uso subtil do fantasma, mostrando-o pouco, mas fazendo a sua presença sentir-se em cada instante. Infelizmente, em muitos momentos optou por um uso excessivo dos efeitos sonoros e do volume, que substituíram o efeito perturbante que deveria ser da cena. O final lamechas também não ajudou, retirando o efeito agridoce dos últimos minutos de filme e que deveria ter permanecido.
Apesar disso, o filme tem suficientes twists e momentos assustadores que compensam o fraco argumento (de Balagueró e Jordi Galcerán, autor da peça “El Método”). Tem tudo a ver com o ambiente, a atmosfera de perigo e desassossego, soturna e mórbida, quase sempre nocturna e deprimente, e cheia de chuva, cinzentos e sombras na fotografia de Xavi Giménez. A música de Roque Baños ajuda consideravelmente na criação da opressão que precede os sustos. Para mim o assunto “ossos” é particularmente sensível, causando-me um certo desconforto físico (até o simples estalar dos dedos das mãos já me arrepia), o que permitiu ampliar estes efeitos e tornar a viagem de terror um pouco mais gratificante.
A terceira estrela é porque me fez tapar a cara, várias vezes. E pela beleza quase irritante de Elena Anaya (um bónus para os meninos).
Realização: Lasse Hallström. Elenco: Heath Ledger, Sienna Miller, Jeremy Irons, Oliver Platt, Lena Olin, Omid Djalili, Helen McCrory, Leigh Lawson, Tim McInnerny, Charlie Cox, Natalie Dormer. Nacionalidade: EUA, 2005.
Pior do que ter ido ver “Casanova” no dia de estreia, é ter gostado do filme e ter-me divertido imenso. Não é uma coisa de que me orgulhe: este filme é uma comédia romântica passada em 1753, que anda à volta da troca de identidades, a la Shakespeare, e que é consideravelmente pirosa.
Casanova (Heath Ledger) é um libertino sob o olhar curioso do Vaticano. Protegido pelo Doge de Veneza (Tim McInnerney de “Blackadder”) que o aconselha a casar, Casanova escolhe a pura Victoria (Natalie Dormer), para mais tarde se encantar por Francesca Bruni (Sienna Miller), uma feminista prometida em casamento a um comerciante genovês que nunca viu, Papprizio (Oliver Platt). Mas a vida de Casanova complica-se ainda mais com a chegada do Bispo Pucci (Jeremy Irons num registo cómico refrescante) vindo do Vaticano para limpar Veneza das suas imoralidades, nomeadamente, do grande fornicador (esta palavra tem algo de profissional que me inquieta) Casanova.
Esqueçam a coerência ou credibilidade, ou mesmo a autenticidade histórica. Este não é um filme para levar a sério. Mas, vendo bem, muita coisa na vida também não o deve ser. Este filme é um apelo aos sentidos. A visão é deliciada com a fotografia de Oliver Stapleton e o guarda-roupa de Jenny Beavan. A beleza de cada cena é de tirar a respiração. Algo semelhante aos efeitos de Casanova sobre Victoria, uma sedutora virgem em pleno cio. A audição regala-se com a música de Alexandre Desplat. E a voz de Heath Ledger que, depois do duro sotaque em “Brokeback Mountain”, tem a sensualidade de um ronronar aveludado.
Pois, dêem-me um Heath Ledger. E uma Sienna Miller, uma Lena Olin, um Oliver Platt e um Jeremy Irons (ah, e Omid Djalili como o criado de Casanova). Tudo isto em Veneza e o meu dia está feito. Uma vitória da forma sobre o conteúdo. Mas há dias em que é isso mesmo que é preciso: afogar o intelecto em puro prazer.
CITAÇÕES:
“Casanova - I've never sought glory as a lover.
Irmã Beatrice - What then, senor Casanova, do you seek?
Casanova - A moment that lasts a lifetime.”
HEATH LEDGER (Casanova) e LAUREN COHAN (Irmã Beatrice)
“Casanova - Casanova the philosopher, who devotes his life to the perfection of experience?
Francesca - No, Casanova the libertine, who devotes his life to seducing women.
Casanova - Well, we're obviously talking about the same person.”
HEATH LEDGER (Casanova) e SIENNA MILLER (Francesca)
“Give me a man who is man enough to give himself just to the woman who is worth him. If that woman were me I would love him alone and forever.”
SIENNA MILLER (Francesca)
Realização: Gavin Hood. Elenco: Presley Chweneyagae, Mothusi Magano, Jerry Mofokeng, Zenzo Ngqobe, Kenneth Nkosi, Percy Matsemela, Thembi Nyandeni, Terry Pheto, Benny Moshe, Nambitha Mpumlwana, Rapulana Seiphemo, Zola, Jerry Mofokeng. Nacionalidade: Reino Unido / África do Sul, 2005.
"Tsotsi" significa "rufia" ou "desordeiro" na linguagem das ruas de Soweto, um gueto negro nos subúrbios de Joanesburgo. Tsotsi (Presley Chweneyagae) tem 19 anos e é chefe de um grupo de gangsters: Boston (Mothusi Magano), Butcher (Zenzo Ngqobe) e Aap (Kenneth Nkosi). Tsotsi é o sociopata do grupo, transformando um assalto num assassínio, e espancando Boston quando este clama pelo valor da decência. Num bairro da classe média, Tsotsi atira sobre uma mulher (Nambitha Mpumlwana) para lhe roubar o carro. Uns metros mais à frente, Tsotsi repara que há um bebé no banco de trás. Um misto de emoções trespassa a sua expressão (numa convincente interpretação do estreante Chweneyagae), e dá-se início a uma viagem de transformação.
O mundo de Tsotsi define-se no mais básico: necessidades, desejos, oportunidades, obstáculos, perigos. A esperança não abunda e a tragédia espreita a cada esquina. A solidão, a raiva e a alienação são combatidos com agressividade e crueldade. Além do bebé, outros dois encontros servem de catalizador para a mudança e a curva de aprendizagem de Tsotsi vai-se fazendo por tentativa e erro. Mas o sorriso que nos surge quando vemos Tsotsi tentar cuidar da criança, com claro desconhecimento, mistura-se com o desconforto das reais dificuldades daquelas vidas.
A infância de Tsotsi, e os seus motivos, surgem em flashbacks que, mais do que desculpar qualquer uma das suas atitudes violentas, justificam as suas atitudes de crescente carinho para com aquela criança. Através dela, Tsotsi resgata o seu passado, as suas dores, e até a sua identidade. E a “decência” apregoada por Boston acaba por ser aquilo que Tsotsi encontra.
O tema do “homem mau” humanizado através do contacto com um inocente não é novo, e o registo do filme lembra inevitavelmente “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002), sem, no entanto, chegar à excelência deste último. Mas “Tsotsi” é, no global, um filme bem feito (ainda que eu não perceba o Oscar), para o que contribui também a fotografia de Lance Gewer, que capta a pobreza e desolação do gueto, com uma escuridão envolvente, cores quentes e suave iluminação.
A acção do romance do dramaturgo Athol Fugard (publicado nos anos 80), no qual “Tsotsi” se baseia, desenrolava-se durante os anos 50, no início do apartheid. A actualização foi feita para os nossos dias com a inclusão opressiva de outro flagelo, a SIDA, por todo o lado surgindo cartazes com a mensagem: “We are all AFFECTED by HIV and AIDS”. Os riscos mudam, mas não desaparecem, a vida para estes órfãos sem casa continua a ser assustadora. E a marca deste filme, quase apagada no meio da narrativa, são essas crianças, vivendo dentro de tubos de cimento.
Fica a esperança de que aquele fim seja, simbolicamente e na sua essência, a luz de um princípio.
DICIONÁRIO:
"Tsotsi" literally means "thug" or "gangster". The word "tsotsi" means a black urban criminal, a street thug or gang member in the vernacular of black townships in South Africa. Its origin is possibly a corruption of the Sesotho word "tsotsa" meaning to dress flashily, zoot suits being originally associated with tsotsis. A male is called a tsotsi and a female tsotsi is called a noasisa.
"Kwaito" is the modern music of South African townships. It is used extensively on the film's soundtrack, some of which is performed by Zola, to add to the authentic feel of ghetto street life.
Já com calendário, aqui fica a programação da 3ª edição do IndieLisboa – Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa.
Além destes filmes, o IndieLisboa homenageará nesta edição 4 HERÓIS INDEPENDENTES: Michael Glawogger, Jay Rosenblatt, Nobuhiro Suwa e Edgar Pêra.
Para mais informações sobre os filmes cliquem aqui.
Realização: David Cronenberg. Elenco: Viggo Mortensen, Maria Bello, Ed Harris, William Hurt, Ashton Holmes, Peter MacNeill, Heidi Hayes, Aidan Devine, Bill MacDonald. Nacionalidade: EUA, 2005.
Tom Stall (Viggo Mortensen) é dono de um pequeno restaurante na pacata vila de Millbrook, Indiana. A mulher de Tom (Maria Bello) e os seus filhos Jack (Ashton Holmes) e Sarah (Heidi Hayes), bem como a restante Millbrook conhecem Tom como um homem pacífico. Mas ao defender-se de uma tentativa de assalto, Tom mata dois homens, tornando-se o herói do momento. Até ao dia em que surge Carl Fogarty (Ed Harris) que afirma conhecer Tom de Philadelphia, onde ele daria pelo nome de Joey, irmão do criminoso Richie Cusack (William Hurt).
Após o assalto, o filme retoma uma certa paz quotidiana. Mas, a partir desse momento, esta calma oculta uma crescente tensão, à medida que se vai entrando numa espiral de agressividade (jornalística, psicológica e física).
Bastante mais convencional que “Spider” (2002), e numa linha mais mainstream, “A History of Violence”, baseado na banda desenhada de 1997 de Vince Locke e John Wagner, ainda mantém alguma da profunda e perturbante exploração do humano tão característica de Cronenberg, abordando questões de identidade e a linha ténue entre realidade e fantasia.
“A History of Violence” beneficia de um conjunto de grandes interpretações, marcadas por fortes mudanças emocionais. Viggo Mortensen está totalmente à altura deste papel, modulando toda a sua complexidade com extremo cuidado. E o mesmo acontece com Maria Bello. Mas a minha preferência é monopolizada por um demente William Hurt, seguido de um arrepiante e ameaçador Ed Harris. A cena final termina em silêncio. Mas Cronenberg é tão exímio em dar vida a estes seres, que conseguimos ouvir cada palavra não dita.
Face à BD, as grande diferenças residem no nome das personagens e na geografia. As cenas de sexo são também uma novidade. Contestadas pelos puristas, são para mim essenciais na caracterização da relação entre o Tom e Edie. E desculpem os mais pudicos, mas o 69 entre Viggo Mortensen e Maria Bello é de uma intimidade quase comovente.
Cronenberg mistura sexo e violência, compaixão e raiva, vingança e perdão. O argumento de Josh Olson está muito bem escrito e Cronenberg filma a violência com uma tal arte e beleza que é impossível não fazer a analogia com a dualidade de atracção-aversão que a violência exerce sobre todos nós. Até os momentos mais “pacíficos” estão repletos de sentimentos violentos (o amor incluído).
Cronenberg joga com isso e levanta questões: a violência pode ser justificada? ou apenas gera mais violência? como responder à violência quotidiana que enfrentamos nas nossas vidas, seja na escola, na rua, ou numa relação? como lidar com a agressividade que reside em cada um de nós, ainda que adormecida?
Por muito que nos custe, a violência faz parte da condição humana. E por muito que a reneguemos há algo na nossa natureza que se regozija perante visões de agressividade e sangue. Cada um de nós alberga um monstro. Felizmente, a maioria de nós não o alimenta.
CITAÇÕES:
“We never got to be teenagers together. I’m gonna fix that.”
MARIA BELLO (Edie Stall)
“There's no such thing as monsters.”
VIGGO MORTENSEN (Tom Stall)
... e com ele, e com ela. E parece que nunca é demais.
Realização: Niki Caro. Elenco: Charlize Theron, Frances McDormand, Sean Bean, Woody Harrelson, Richard Jenkins, Sissy Spacek, Jeremy Renner, James Cada, Rusty Schwimmer, Linda Emond, Michelle Monaghan, Elle Peterson, Thomas Curtis. Nacionalidade: EUA, 2005.
“North Country”, realizado pela neo-zelandesa Niki Caro fica bastante aquém do seu belíssimo “Whale Rider” (2002). Baseado livremente no livro “Class Action: The Landmark Case That Changed Sexual Harassment Law”, “North Country” conta a história do primeiro caso em que foi ganho um caso de acção de classe contra uma empresa por assédio sexual. A personagem ficcional Josey Aimes (Charlize Theron) é uma mãe de dois filhos que deixa um marido violento para reconstruir a sua vida. A contragosto do seu pai (Richard Jenkins), Josey decide trabalhar para junto dele numa mina de ferro, um lugar onde, juntamente com outras mulheres, é sujeita às mais diversas humilhações, incluindo abusos psicológicos e físicos.
Josey cala-se porque precisa do emprego, mas quando um superior, Bobby Sharp (Jeremy Renner) vai longe demais, e após enfrentar o duro desprezo dos seus patrões, Josie decide processar a empresa. Josey é inspirada pelo caso de Anita Hill, cujo processo de acusação de Clarence Thomas por assédio sexual ocorreu em 1991.
O forte elenco, encabeçado por Charlize Theron, que nos agarra de tal forma que nos impede, durante o filme, de fazer qualquer avaliação imparcial (ainda assim bem menos forte que em “Monster”, 2003), inclui também uma sólida Frances McDormand, e um resgatado Richard Jenkins (visto ultimamente como o pai “morto” da família de “Sete Palmos de Terra”), um Sean Bean em novo registo, um competente Woody Harrelson e uma confirmada Michelle Monaghan (“Kiss Kiss, Bang Bang”, 2005).
Infelizmente, nem mesmo a recriação de belíssimas paisagens do Minessota salvam este filme dos clichés de tribunal que acabam por marcar o desenrolar da história. A vitimização de Josie Aimes é tal, no campo profissional e também pessoal, que surge como uma manipulação dramática.
Os homens (e também muitas mulheres) ressentem-se pela inclusão forçada de mulheres no seu domínio, e muitas mulheres acomodam-se pelo medo de perderem o pouco que conquistaram, como se estivessem de facto a receber algo acima do que lhes é devido. Mas este filme vai mais além, não se limitando ao processo de aceitação das mulheres num grupo de homens, mas também da aceitação de um indivíduo (Josey) por parte de outro (o seu pai).
Apesar do excessivo melodrama, e de alguma datação, “North Country” não deixa de abordar um tema que, infelizmente, ainda está presente na nossa sociedade, ainda que camuflado. E não me refiro essencialmente ao carácter sexual do acosso, mas à descriminação a que as mulheres ainda são sujeitas. E não só em termos profissionais. O argumento “nuts and sluts” apregoado pelos advogados de defesa em muitos destes casos contra as mulheres que ousam levantar a sua voz do rebanho, parece ainda ser válido em muitas mentes.
CITAÇÕES:
“You don't gotta come into work scared that one of these days you're gonna be raped,.”
CHARLIZE THERON (Josey Aimes)
Movies have the power to inspire. You have the power to act. Participate!
No site oficial do filme “Good Night, And Good Luck” deparei-me com um link para este outro site. Trata-se de uma comunidade de amantes de cinema que acredita no poder dos media para produzir mudanças sociais importantes, não só para aumentar o conhecimento sobre determinados assuntos, mas também educar e impelir à acção como parte de um colectivo.
Neste momento, estão a decorrer diversas campanhas com o cinema como inspiração, entre as quais:
STAND UP
Inspirada no filme “North Country” de Niki Caro, com o objectivo de acabar com o assédio sexual e a violência doméstica.
REPORT IT NOW
Inspirada no filme “Good Night, And Good Luck” de George Clooney, com vista a impelir os media a debruçarem-se sobre os assuntos de interesse público.
OIL CHANGE
Inspirada no filme “Syriana” de Stephen Gaghan, com o intuito de reduzir a dependência petrolífera.
GET INTO THE GAME
Inspirada no filme “Murderball” de Henry Alex Rubin e Dana Adam Shapiro, para o apoio ao desporto para deficientes.
Pelo que percebi, parece que estas acções se cingem ao solo americano. De qualquer modo, é reconfortante ver que, do outro lado do Atlântico, o social também tem os seus adeptos, ainda que, entre republicanos e democratas, as suas ideias dificilmente chegarão ao poder.
Felizmente, o mundo é feito de indivíduos!
Realização: George Clooney. Elenco: David Strathairn, Robert Downey Jr., Patricia Clarkson, Ray Wise, Frank Langella, Jeff Daniels, George Clooney, Tate Donovan, Matt Ross, Reed Diamond, Grant Heslov. Nacionalidade: Japão / França / Reino Unido / EUA, 2005.
“Good Night, And Good Luck” não é uma lição de história sobre a América dos anos 50, nem sequer uma biografia do jornalista Edward R. Murrow, que em 1954 confrontou no seu programa televisivo “See It Now” o Senador Joseph McCarthy, presidente do Subcomité Permanente de Investigações do Senado, pelo seu indiscriminado furor anti-comunista e abuso de poder, evidenciando a fina linha que divide investigação de perseguição.
A acção decorre entre o Inverno de 1953 e a Primavera de 1954, em que Murrow (David Strathairn) tenta convencer o produtor Fred Friendly (Clooney) a deixá-lo ir atrás de McCarthy. Cuidadosamente, escolhem o caso de Milo Radulovich, um veterano da Segunda Guerra Mundial que está a ser expulso da Força Aérea por suspeitas de que o seu pai e irmã possam ser simpatizantes comunistas.
A segunda realização de George Clooney, três anos depois de “Confessions of a Dangerous Mind”, apesar de todo o contexto histórico, reforçado pelo visual preto e branco da fotografia de Robert Elswit, acaba por ser dolorosamente actual. “Good Night, And Good Luck” fala da censura do governo, da cobardia e falta de imparcialidade dos media, do poder da publicidade (como é o caso da tabaqueira que alimenta o vício de 3 maços por dia de Murrow) e de um público demasiado estupidificado pelo entretenimento para digerir informações que o possam chocar.
Sem sermões, o argumento de Clooney (filho de um jornalista e claro admirador de Edward R. Murrow) e do também actor Grant Heslov (aqui no papel de Don Hewitt) é acutilante e de fortes convicções, dando também voz ao ansioso e razoável chefe de Murrow (Jeff Daniels) e o director da estação CBS William Paley (o soberbo Frank Langella).
A extensa equipa de produção, onde se inclui Steven Soderbergh, não podia ter encontrado melhor actor para fazer os necessários discursos. O Murrow de Strathairn não sorri mas tem humor, é reservado mas não insensível. E concentra um poder imenso na voz monocórdica, no lento inalar de um cigarro, um olhar intenso para a câmara. Ao não se abordar a vida pessoal de Murrow, ele acaba por se tornar símbolo das liberdades constitucionais, reivindicadas contra acções movidas por rumores e insinuações, onde se suspeita de tudo o que possa ser diferente.
Da mesma forma que Murrow usa as próprias palavras de McCarthy para o derrubar, também Clooney opta por usar as imagens de arquivo de McCarthy. O ritmo que impregna à história é irrepreensível, alternando cenas dramáticas com belíssimos interlúdios de jazz na voz de Dianne Reeves, igualmente importantes na construção do forte ambiente do filme.
A grande falha de “Good Night, And Good Luck” é, na minha opinião, a falta de contexto histórico. Entra-se a tal velocidade no enredo que, um espectador que esteja mais fora desta realidade histórica americana, facilmente se sentirá perdido (talvez mais uma das recorrentes presunções do cinema americano de que todos sabemos o que lá se passa, ou que nos importamos...). Clooney faz uma insuficiente tentativa de caracterizar a repressão e a tensão vivida na época através storylines paralelas mais pessoais, como é o caso do jornalista Don Hollenbeck (Ray Wise) acusado de simpatias comunistas, ou do casal de jornalistas Joe e Shirley Wershba (Robert Downey Jr. e Patricia Clarkson), que, devido às legislações empresariais, fingem não ser casados.
De qualquer modo, este é um filme fascinante sobre a paixão que pode mover uma profissão. Especialmente se essa profissão pode de facto marcar a diferença. Através de Clooney e Strathairn esta redacção torna-se o mais importante sítio do mundo para se estar.
TAGLINE:
“We will not walk in fear of one another.”
CITAÇÕES:
“I simply cannot accept that there are, on every story, two equal and logical sides to an argument.”
DAVID STRATHAIRN (Edward R. Murrow)
“No one familiar with the history of his country, can deny that congressional committes are useful. It is necessary to investigate before legislating. But the line between investigating and persecuting is a very fine one, and the Junior Senator from Wisconsin has stepped over it repeatedly. His primary acheivement has been confusing the public mind as between the internal and the external threats of communism. We must not confuse descent from disloyalty. We must remember always, that accusation is not proof, and that conviction depends upon evidence and due process of law. We will not walk in fear, one of another, we will not be driven by fear into an age of unreason. If we dig deep into our history and our doctrine, we will remember we are not descendant from fearful men. Not from men who dared to write, to speak, to associate, and to defend causes that were for the moment unpopular. This is no time for men who oppose Sen. McCarthy's methods to keep silent or for those who approve. We can deny our heritage and our history but we cannot escape responsibility for the result. There is no way for a citizen of the republic to advocate his responsibilities. As a nation we have come into our full inheritance at a tender age. We proclaim ourselves as indeed we are, the defenders of freedom where ever it still exists in the world. But we cannot defend freedom abroad by deserting it at home. The actions of the Junior Senator from Wisconsin have caused alarm and dismay amonst our allies abroad and given considerable comfert to our enemies. And who's fault is that? Not really his, he didn't create this situation of fear he merely exploited it, and rather successfully. Cassus was right, the fault dear Brutus is not in our stars, but in ourselves. Good night, and good luck.”
DAVID STRATHAIRN (Edward R. Murrow)
“To those who say people wouldn't look; they wouldn't be interested; they're too complacent, indifferent and insulated, I can only reply: There is, in one reporter's opinion, considerable evidence against that contention. But even if they are right, what have they got to lose? Because if they are right, and this instrument is good for nothing but to entertain, amuse and insulate, then the tube is flickering now and we will soon see that the whole struggle is lost. This instrument can teach, it can illuminate; yes, and it can even inspire. But it can do so only to the extent that humans are determined to use it to those ends. Otherwise it is merely wires and lights in a box. There is a great and perhaps decisive battle to be fought against ignorance, intolerance and indifference. This weapon of television could be useful.”
DAVID STRATHAIRN (Edward R. Murrow)
Como tive oportunidade de ver in loco, o Teatro Windmill é actualmente um clube nocturno com nude shows no característico bairro do Soho. Já não com o carácter distintivo que o marcava na década de 30-40, mas agora inserido numa área da cidade onde a contracultura (entenda-se, o humano) marca a paisagem urbana.
Logo ao lado, no Lyric Theatre, está “The Night of the Iguana” com Woody Harrelson. Entre o muito que ficou por ver ficaram também as peças “The Cut” com Sir Ian McKellen, “Who’s Afraid of Virginia Woolf?” com Kathleen Turner, e “Embers” com Jeremy Irons.
A 2 de Outubro, directamente do outro lado do Atlântico, chegará ao Palace Theatre de Londres (com promessa de ficar até 31 de Março de 2007) o musical Monty Python’s Spamalot, uma obra dirigida por Mike Nichols, com letra e música de Eric Idle e com interpretações de Simon Russel Beale como King Arthur, Hannah Waddingham como The Lady of the Lake, David Birrel como Patsy, Tom Goodman-Hill como Sir Lancelot e Robert Hands como Sir Robin. Os bilhetes já estão à venda e os preços variam entre as 15 e 55 libras (claro que para as £15 a visibilidade deve ser tão reduzida que mais vale comprar o DVD quando sair).
Há também, claro, a alternativa de esperar uns 10 ou 15 anos, e ver este musical no Pavilhão Atlântico.