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CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

Happy-Go-Lucky ****

17.05.08, Rita

Realização: Mike Leigh. Elenco: Sally Hawkins, Alexis Zegerman, Andrea Riseborough, Samuel Roukin, Sinead Matthews, Kate O'Flynn, Sarah Niles, Eddie Marsan. Nacionalidade: Reino Unido, 2008.





Sem as ironias que o título ‘Happy-Go-Lucky’ poderia originar, o último filme de Mike Leigh (“Naked”, “Secrets & Lies”, “Vera Drake”) é sobre uma pessoa genuinamente feliz e sem um lado negro pelo qual o cinismo dos dias de hoje nos habituou a esperar.


Poppy (Sally Hawkins) vai todos os dias de bicicleta para o trabalho, mas quando a sua bicicleta é roubada ela limita-se a um curto desabafo. O prazer no seu trabalho como professora primária é notório quando faz máscaras de papel a imitar pássaros e coloca toda a aula a piar e a bater as asas. Como hobby faz trampolim e adora sair à noite com a irmã e as amigas. Poppy quer que todos sejam felizes e não consegue evitar tentar ligar-se aos outros, por muito ténue que seja essa relação social (vide o delicioso exemplo do empregado da livraria ou da expressiva professora de flamenco).


O seu maior desafio é personificado no instrutor de condução Scott (Eddie Marsan), de temperamento irritável, pessimista e controlador. O oposto da vivacidade, descontracção e alegria de Poppy. Entre eles estabelece-se uma dinâmica de método versus caos. Scott choca-se com a falta de concentração de Poppy e as suas inapropriadas botas, e instituiu a mnemónica "En-Ra-Ha" para o triângulo de espelhos retrovisores. O tom cómico da sua exasperação perante a constante boa-disposição de Poppy, e do degladiar do profissionalismo dele com a espontaneidade dela, far-se-á num acumular de tensão até à explosão dos ressentimentos e paranóias.


Scott é um ponto intermédio neste “estudo” sobre emoções recalcadas que se extravasam em actos agressivos. Apesar dos danos há ainda a esperança de aprendizagem. Numa fase inicial encontra-se um dos alunos de Poppy, que de repente se tornou violento com os colegas, mas que, com a ajuda de um assistente social (Samuel Roukin), é possível recuperar. Para além do remediável parece estar um sem-abrigo demente (Stanley Townsend) com quem Poppy se cruza.


“Happy-Go-Lucky” é também um ensaio sobre a educação e a aprendizagem, de como uns usam o conhecimento para se libertarem e outros acorrentam as suas mentes com regras e falsas expectativas. Ao contrário de ambas as suas irmãs (Kate O'Flynn e Caroline Martin), Poppy recusa-se a que a vida a derrube ou a deprima, elevando-se acima do cinismo que o sorriso da sua companheira de casa Zoe (Alexis Zegerman) já não consegue esconder. Num mundo onde os pais cada vez mais abdicam das suas responsabilidades como educadores, “Happy-Go-Lucky” fala ainda da responsabilidade dos professores em identificar as dificuldades emocionais dos seus alunos.


“Happy-Go-Lucky” contraria a miséria pessoal que habitualmente habita o universo de Mike Leigh e é, possivelmente, a sua obra mais refrescante (colorida da forte paleta da fotografia de Dick Pope). Felizmente, isso não impediu que o seu trabalho com os actores (“explorados” em workshops de improvisação) mantivesse uma caracterização detalhada. Sally Hawkins (“Cassandra’s Dream”), vencedora do Urso de Prata da última edição do Festival de Berlim, vai de uma exuberância que começa por ser estranha, porque atípica, passando por uma fase quase irritante (quem é que aguenta uma pessoa que nunca se chateia com nada?) e terminando por se adentrar e contagiar-nos com a vontade de ser também a assim (a expressão ‘lust for life’ é incontornável).


Talvez num mundo cheio de tragédias, numa vida onde a sorte não tem lugar, seja possível manter-se a inocência, a abertura aos outros, a compaixão, tudo isso sem ter de pedir desculpa por quem somos. Um filme sobre a aprendizagem a vários níveis. Porque ser feliz também é disciplina.

















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