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CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

Tarnation ***

18.02.05, Rita

Realização: Jonathan Caouette. Elenco: Jonathan Caouette, Renee Leblanc, Adolph Davis, Rosemary Davis, David Sanin Paz. Nacionalidade: EUA, 2003.





A palavra “tarnation” significa o acto de amaldiçoar ou a condição de ser amaldiçoado, usada para expressar raiva ou aborrecimento, possivelmente derivada da composição da expressão “eternal damnation”.


2003. Jonathan descobre que a sua mãe esquizofrénica sofreu uma overdose da sua medicação de lítio. Este é o ponto de partida para uma expedição de 20 anos para desenterrar uma infância de violência, abandono, drogas e psicose. Caouette filma-se a si próprio neste relato pessoal de uma experiência de crescimento marcada por uma mãe, Renee, portadora de uma doença mental crónica e que, durante décadas, saltou de um hospital psiquiátrico para outro.


Renee foi uma modelo na sua juventude, antes de sofrer um acidente que a manteria paralisada durante 6 meses. Crentes de que era uma reacção psicossomática, os seus pais, avós de Jonathan, autorizaram o tratamento através de inúmeras sessões de choques eléctricos. Mais tarde descobriu-se que ela não tinha qualquer instabilidade mental antes do tratamento, mas o mesmo não se pode dizer depois.


Parte documentário, parte ficção, parte home movie e parte viagem alucinógena, Tarnation é um furacão psicadélico de fotografias, Super-8, mensagens de gravador telefónico, video-diários, curtas-metragens, e pedaços de cultura pop dos anos 80. A evolução técnica do material de suporte espelha a progressão da instabilidade mental de Renee e a progressão de Jonathan em lidar com a vida que lhe calhou em sorte.


No meio de perguntas que não se fazem e respostas que se evitam, Jonathan cresce através de encenações. A ficção parece ser a única forma de se ligar à realidade. Ou de se escapar dela. Com efeito, um dos dois momentos particularmente longos e violentos deste filme, mostra Jonathan com 11 anos, representando, com uma convicção impressionante, o papel de uma dona de casa agredida por um marido bêbado. O segundo, a filmagem distanciada de Renee, já após a overdose de lítio, num momento de demência interminável.


Em vez da narração, a história é contada em legendas, separando o protagonista do realizador, um pouco à semelhança da perturbação psicológica diagnosticada mais tarde a Jonathan: despersonalização, segundo a qual o mundo parece parte de um sonho e distante. Talvez por isso Tarnation, mais do que um relato de factos, seja uma montagem febril de traumas, memórias, sonhos e repressões, de cores carregadas e por vezes desfocados.


Caouette corta as imagens, roda-as, junta-as no ecrã, em duas, três, quatro, tinge-as e distorce o som, até que as caras que nelas aparecem deixem de se assemelhar a pessoas e se pareçam com demónios, os seus demónios. Mas Tarnation, mais do que uma tentativa de os expulsar, parece ser o caminho da aceitação. Sobretudo da aceitação do amor pela sua mãe, simultaneamente intrínseco e insuportável, marcado pelo grande medo que ele tem de se tornar como ela.


A fraqueza deste filme reside na marcada encenação de algumas cenas, pelo puro efeito dramático, que contrasta com a exaustiva recolha de todo o material de arquivo. Custa esquecermo-nos que não se trata de um documentário puro.


Um filme poderoso e desconcertante sobre o amor de um filho por uma mãe e a dor da impotência que sente para salvá-la. Chocante e cheio de compaixão, é efeitiçante a forma como nos agarra visualmente a uma história demasiado pessoal, como se fosse uma sessão de psicoterapia. Este filme tem o carácter magnético e escabroso de um acidente de carro, e não podemos evitar espreitar. É demasiado íntimo, demasiado sinistro e demasiado violento para se ver, mais é ainda mais difícil desviar o olhar.






POST SCRIPTUM:


P.S. 1 - John Cameron Mitchell (Hedwig, 2001) e Gus Van Sant (Elephant, 2003) foram co-produtores executivos desta experiência cinematográfica.


P.S. 2 - Não considerando a pós-produção e cópias, este filme, montado com o iMovie da Macintosh, custou cerca de $200 (aproximadamente 154 euros), o que nos faz acreditar que o cinema está cada vez mais dependente apenas das capacidades técnicas e da imaginação.


P.S. 3 - Pelo incómodo que me causou, não consigo dar mais nenhuma estrela.