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CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

Cœurs ****

11.04.08, Rita

Realização: Alain Resnais. Elenco: Sabine Azéma, Isabelle Carré, Laura Morante, Pierre Arditi, André Dussollier, Lambert Wilson. Nacionalidade: França / Itália, 2006.





Aos 84 anos, Alain Resnais (“Smoking/No Smoking”, “On Connaît la Chanson”) arrecadou um Leão de Prata na edição de 2006 da Bienal de Veneza com este “Cœurs”, um estudo sobre o medo que deriva de uma aprendizagem através do sofrimento, o abismo que se abre dentro de nós mesmos entre aquilo que temos e aquilo que queremos, e a solidão que deriva de um e outro.


Nicole (Laura Morante) procura um novo apartamento com a ajuda do agente imobiliário Thierry (Andre Dussollier), com a exigência de ter espaço suficiente para que o seu noivo, Dan (Lambert Wilson), possa ter um escritório, um capricho apesar da sua actual condição de desempregado. O primeiro apartamento possui um quarto que foi dividido em dois para aumentar o número de assoalhadas, um símbolo claro para todas as divisões existentes entre as personagens, e dentro de cada uma delas em particular. Thierry trabalha com Charlotte (Sabine Azéma), fã do programa televisivo religioso “Ces chansons qui ont changé ma vie” (realizado dentro do filme por Bruno Podalydès: “Le Mystère de la Chambre Jaune” , “Paris, Je T’Aime”) que, ao final do dia, toma conta do agressivo e debilitado pai de Lionel (Pierre Arditi), empregado no bar de um hotel que Dan costuma frequentar. Quando Nicole deixa de tolerar a constante embriaguez de Dan e a sua falta de objectivos após ter sido demitido do exército, ele decide colocar um anúncio no jornal, e acaba por conhecer Gaëlle (Isabelle Carre), a irmã mais nova de Thierry.


Usando um elenco dos seus regulares, Resnais encena a adaptação de Jean-Michel Ribes da peça de teatro "Private Fears in Public Places" do inglês Alan Ayckbourn. Mais do que as interpretações, ou a gestão do espaço cénico, o tom teatral é evidente sobretudo na iluminação, com a fotografia de Eric Gautier a impregnar o filme de um misto de intimidade e frieza onde a transição de cenas é marcada com uma cortina de neve. Aliás, os elementos de separação marcam todo o filme: um vidro opaco no escritório de Thierry e Charlotte, uma cortinas de tiras entre Lionel e Dan no bar, um biombo orgânico na casa de Dan e Nicole, uma janela exígua entre a sala e cozinha na casa de Thierry e Gaëlle, uma porta para o quarto onde apenas se vêem os pés da cama do pai de Lionel. Tudo isto funcionando como paredes translúcidas, ao contrário das verdadeiramente intransponíveis – aquelas que cada um tem dentro de si.


Resnais vai gradualmente iluminando (ou escurecendo?) o interior destas personagens que, como apartamentos vazios, procuram alguma forma de ligação emocional. Duas pessoas que trabalham anos a fio ao lado uma da outra e mal se conhecem; dois irmãos que, vivendo juntos, escondem as suas inquietações com mentiras. Mas, neste processo duro e cruel, e não isento de humilhações, todos recusam pedir ajuda, ainda que a ofereçam a outros inclusive de formas pouco convencionais. Sem cair no melodrama, “Cœurs” vive de um cómico de situação alicerçado nos segredos.


A entrega aos nossos desejos está longe de ser um caminho fácil, especialmente perante situações de desmoronamento (a desintegração de um casamento, a debilidade física e mental de alguém que amamos, ou a perda de esperança na possibilidade de amor). O acomodamento continuará a ser, para tantos, o único (e triste) caminho. Como uma cassete de vídeo, na nossa vida vamos gravando, repetidamente, novos presentes. Mas escondido, numa camada anterior, jaz o nosso passado, os nossos segredos, e, tantas vezes, os nossos sonhos.


Somos o que somos. Que outro poderíamos ser?






CITAÇÕES:


“Je suis ce que je suis. Après tout, qu’est-ce qu’on peut être à part soi?”
PIERRE ARDITI (Lionel)




















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