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CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

Stranger Than Fiction ****

07.02.07, Rita

Realização: Marc Forster. Elenco: Will Ferrell, Maggie Gyllenhaal, Dustin Hoffman, Emma Thompson, Queen Latifah. Nacionalidade: Reino Unido / EUA, 2006.





A vida de Harold Crick (Will Ferrell) um solitário e entediante (e entediado) empregado das finanças muda drasticamente quando ele começa a ouvir uma voz feminina narrar todos os seus actos quotidianos com detalhes assustadoramente precisos. Sem saber se se trata apenas de uma transcrição ou de uma determinação, o verdadeiro pânico de Harold chega quando a voz lhe revela que a sua morte é iminente. Harold procura então a ajuda do professor de literatura Jules Hilbert (Dustin Hoffman), que o aconselha a transformar a sua vida numa comédia (e evitar o pior desfecho), devendo por isso iniciar um improvável romance com a sua mais recente cliente, Ana Pascal (uma sempre mágica Maggie Gyllenhaal), uma jovem pasteleira a quem Harold está a fazer uma auditoria pela sua recusa em pagar a parte dos seus impostos que iria para os gastos de defesa. Mas a voz na cabeça de Harold acaba por se revelar de Kay Eiffel (Emma Thompson), uma neurótica escritora em pleno bloqueio criativo e cujo único contacto com o exterior é através de Penny Escher (uma subtil Queen Latifah), uma assistente enviada pela editora de Kay para forçá-la a terminar o livro dentro do prazo.


Este filme herda o seu título de uma frase de Mark Twain que diz que a verdade é mais estranha que a ficção por esta última estar limitada às possibilidades, ao contrário da primeira. Desconstruindo a criatividade, o inteligente e imaginativo argumento do desconhecido Zach Helm, que lembra Charlie Kauffman mas num tom menos surreal, aborda o tortuoso mundo da escrita, da forma como as obras têm uma forma quase orgânica de irem crescendo e da complexa relação, e responsabilidade, entre o criador e as suas personagens - aqui numa acepção verdadeiramente divina, com o poder da vida e da morte (quantas vezes não nos revoltamos nós mesmos contra o nosso?).


Seria fácil se houvesse um narrador para as nossas vidas que decidisse tudo, dizendo-nos quem ser e o que fazer. Mas isso seria tão aborrecido! Por isso o filme de Marc Forster (“Monster’s Ball”, “Finding Neverland”) promove o livre arbítrio, instigando-nos a tomar as rédeas da nossa vida e aproveitá-la ao máximo, percebendo que as pessoas e coisas que mais tomamos por certas são muitas vezes aquelas que fazem a vida valer a pena. E se, de vez em quando existem vozes na nossa consciência, talvez devêssemos escutá-las com mais atenção, em vez de as calarmos nos gestos mecânicos de todos os dias.


Com o ritmo marcado pela corrida contra o tempo, “Stranger Than Fiction” faz uma fusão entre o intelectual e o emocional, sem menosprezar nunca os efeitos tónicos de uma boa bolacha. E fá-lo sem cinismos, equilibrado entre a amargura e a esperança, o doloroso e o romântico. Da mesma forma como, objectiva e subjectivamente, a vida e a arte balançam entre a comédia e a tragédia, e como, num doloroso dilema, a simples existência humana pode ser pesada contra a possibilidade de uma obra de arte imortal.


A óptima interpretação de Ferrell, cheia de vulnerabilidade, faz pensar em Bill Murray e na forma como conseguiu eliminar as excentricidades da comédia e entrar em meandros mais subtis e dramáticos (“Melinda and Melinda” tinha já sido um bom exemplo).


“Stranger Than Fiction” revela o extraordinário poder da ficção para abordar o real. Todos somos personagens na nossa própria vida e, como Harold, também “little do we know...” do que está para vir. Melhor assim.






CITAÇÕES:


“The voice isn't telling me to do anything. It's telling me what I've already done: accurately, and with a better vocabulary.”
WILL FERRELL (Harold Crick)

“Dr. Jules Hilbert - The thing to determine conclusively is whether you are in a comedy or a tragedy. Have you met anyone who simply might loathe the very core of you?
Harold Crick - I'm an IRS agent. Everyone hates me.
Dr. Jules Hilbert - Well, that sounds like a comedy!”
DUSTIN HOFFMAN (Dr. Jules Hilbert) e WILL FERRELL (Harold Crick)

“Let's start with ridiculous and work backwards.”
DUSTIN HOFFMAN (Dr. Jules Hilbert)

“You don't understand that this isn't a story to me, it's my life! I want to live!”
WILL FERRELL (Harold Crick)

“This was an awful day for you. I know. I made sure of it.”
MAGGIE GYLLENHAAL (Ana Pascal)

“Ana Pascal - Did you like the cookies?
Harold Crick - Yes. Thank you for forcing me to eat them.”
MAGGIE GYLLENHAAL (Ana Pascal) e WILL FERRELL (Harold Crick)

“And so he did what countless punk-rock songs had told him to do so many times before: he lived his life.”
EMMA THOMPSON (Kay Eiffel)

“Penny Escher - You know there's something called a patch.
Kay Eiffel - I don't need a patch. I smoke cigarettes.”
QUEEN LATIFAH (Penny Escher) e EMMA THOMPSON (Kay Eiffel)





Os apelidos das personagens Crick, Pascal, Eiffel, Hilbert e Escher não são arbitrários:


Francis Harry Compton Crick (8 de Junho de 1916, Northampton, Inglaterra - 28 de Julho de 2004, San Diego, Califórnia) foi um físico e bioquímico britânico, mais conhecido pela descoberta, juntamente com James Watson, da estrutura da molécula de ADN em 1953.

Blaise Pascal (Clermont-Ferrand, Puy-de-Dôme, 19 de Junho de 1623 - Paris, 19 de Agosto de 1662) foi um filósofo, físico e matemático francês de curta existência, que como filósofo e místico criou uma das afirmações mais pronunciadas pela humanidade nos séculos posteriores, O coração tem razões que a própria razão desconhece, síntese de sua doutrina filosófica: o raciocínio lógico e a emoção.

Gustave Eiffel (Dijon, 15 de Dezembro de 1832 - Paris, 27 de Dezembro de 1923), arquitecto e engenheiro francês. Especializou-se em construções metálicas, no que foi um dos melhores da sua época. Começou a sua carreira construindo viadutos (o mais destacado é o de Garabit, de 1882), e pontes metálicas.

David Hilbert (23 de janeiro de 1862 em Wehlau, hoje Znamensk, perto de Königsberg - 14 de fevereiro de 1943 em Göttingen) foi um matemático alemão. Hilbert é freqüentemente considerado como um dos maiores matemáticos do século XX, no mesmo nível de Henri Poincaré. Devemos a ele principalmente a lista de 23 problemas, alguns dos quais não foram resolvidos até hoje, que ele apresentou em 1900 no Congresso Internacional de Matemática em Paris.

Maurits Cornelis Escher (Leeuwarden, 17 de Junho de 1898 - Hilversum, 27 de Março de 1972) foi um artista gráfico holandês conhecido pelas suas xilogravuras, litografias e meios-tons (mezzotints), que tendem a representar construções impossíveis, preenchimento regular do plano, explorações do infinito e as metamorfoses - padrões geométricos entrecruzados que se transformam gradualmente para formas completamente diferentes.

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