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CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

CineEco 2006 - a digestão

12.11.06, Rita



Depois da ressaca chega a digestão: uma referência a alguns dos filmes que me deixaram mais marcas (positivas e negativas).






“Les Réfugiés de la Planète Bleue” / “Os Refugiados do Planeta Azul”, de Jean-Philippe Duval e Hélène Choquette (França e Canada, 2006)

Em todo o mundo, milhões de pessoas são obrigadas a deslocarem-se e a abandonarem as suas casas, por razões ambientais. No Canadá, nas Maldivas e no Brasil, assistimos a casos de terras contaminadas por gases tóxicos ligados à exploração petrolífera, aos efeitos na vida marinha e pesqueira em resultado do aquecimento global, ou o esgotamento das terras provocado pelas monoculturas. As pressões económicas e ambientais sobre as populações rurais forçam o abandono do seu modo de vida tradicional, transformando um grande número de indivíduos em refugiados. Sem um estatuto legal, o número destes refugiados tende a aumentar, superando inclusivamente o dos refugiados políticos.

Para mim, o melhor filme deste festival.






“Wasser unterm Hammer” / “H2O (Água à Venda)”, de Leslie Frank (Alemanha, 2005)

Um importante filme sobre a privatização da água, contrastando a experiência inglesa com a verificada em algumas cidades alemãs. Será legítimo fazer uma exploração com objectivos de lucro de um recurso natural que deveria estar ao alcance de todos visto satisfazer uma necessidade básica das populações? Este filme põe em questão o falacioso argumento de que a gestão privada será sempre mais eficaz que uma gestão pública. O abuso da posição de monopólio que é gerada pela privatização de águas municipais, com despedimentos massivos e aumento exorbitante de preços, raramente parece estar a ser compensada por uma gestão mais eficiente e sustentável de um recurso escasso. Aos lençóis freáticos ingleses, contaminados durante a revolução industrial (e à canalização de Londres da época victoriana), é contraposto o exemplo de Hamburgo, onde a empresa (pública) de águas detém terras importantes em torno da cidade, cedendo-os para exploração agrícola de tipo biológico, no sentido de proteger os lençóis freáticos. Nesta mesma cidade, a opção pela gestão pública ganhou em referendo.






“Gharat”, de Pankas Rishi Kumar (Índia, 2005)

Nas terras de montanha dos Himalais, o sistema de gharat – moinhos que aproveitam a corrente dos cursos de água – permite estabelecer um sistemas económico descentralizado, ao utilizar a energia hidráulica para as culturas dos cereais, do arroz e do algodão, bem como para a produção de electricidade, evidenciando assim o potencial da tecnologia de pequena escala para o desenvolvimento sustentável.






“Gambit”, de Sabine Gisiger (Suiça, 2005)

“Gambit” versa sobre as consequências criminais e sociais de um acidente que teve lugar em Seveso, Itália, e que teve por base objectivos puramente económicos associados a um elevado grau de negligência. Em 1976, um problema mecânico num reactor provoca um derrame de uma dioxina venenosa resultante da produção de triclorofenol. Em 1983, o químico Jorg Sambeth é condenado a 5 anos de prisão, acarretando, como um bode expiatório, as culpas de uma grande organização: Givaudan- Roche, porque “he who pays the piper calls the tune”.






“White Gold – The True Cost of Cotton” / “Ouro Branco – O Verdadeiro Preço do Algodão”, de Sam Cole (Reino Unido, 2005)

Uma belíssima curta-metragem sobre o desaparecimento do mar Aral, no Uzbequistão, em resultado da intensiva cultura do algodão, para a qual são chamadas todas as mãos disponíveis, incluindo as crianças que deveriam estar nas escolas. A mensagem final: “buy your cotton carefully”.

Para ler o relatório da Environmental Justice Foundation e para ver o vídeo, clicar aqui.






“Giovanni e Il Mito Impossibile delle Arti Visive” / “Giovanni e o Mito Impossível das Artes Visuais”, de Gabriele Gismondi & Ruggero Di Maggio (Itália, 2005)

O olhar inocente de um homem de 70 anos, Giovanni, sobre a arte moderna e as suas (im)possíveis interpretações, que ocupa cada canto da sua cidade, Gibellina, Sicília. Em 1968, a Gibellina original foi completamente destruída por um terramoto. Poderá a arte responder às questões filosóficas levantadas pelos desastres natural?

Trailer aqui.






“Kitui Sand Dams” / “Represas de Areia no Kitui”, de Hans Van Westerlaak e Eva Zwart (Holanda, 2006)

No Quénia, a empresa SASOL (Sahelian Solutions Foundations Kenya) promove a construção de represas de areia no rio Kitui. Esta actividade permite a populações com graves problemas económicos ter, por um lado, um trabalho activo, e, por outro, retirar benefícios de uma infra-estrutura que lhes permite combater os efeitos das secas. Um documento a ver, pela utilidade de uma solução pouco dispendiosa e pela extrema necessidade de envolver directamente as populações na resolução dos seus problemas.

Preview aqui.






“Os Herdeiros do Guaraná”, de Rémi Denecheau (França, Brasil, 2005)

O guaraná é um elemento decisivo na economia local de Maués, Amazonas. Os Satéré-Mawé e outros povos indígenas lutam por preservar esta cultura, através de um processo produtivo que respeita os recursos naturais e a biodiversidade, em contraste com a pressão de grandes empresas como a Guaraná Antarctica, actualmente parte do grupo Pepsi Co..




“Bartô”, de Luíz Botosso e Thiago Veiga (Brasil, 2006)

Uma boa metáfora, em animação, sobre o conflito entre homem e natureza, ou melhor, da acção destruidora e despótica do primeiro sobre a segunda.






“El Cerco” / “O Cerco”, de Ricardo Íscar e Nacho Martín (Espanha, 2005)

Na costa de Cádiz, um grupo de pescadores cerca um cardume de atuns à medida que este se aproximam do estreito de Gilbraltar (um ritual mouro denominado “La Almadraba”). Uma curta-metragem que condensa, de forma exímia, uma história de vida e morte, fazendo um bom uso da fotografia sépia e do barulho natural dos peixes para criar tensão.




“Hijos de la Montanã de Plata” / “Os Filhos da Montanha”, de Juan S. Betancor (Espanha, 2005)

“Hijos de la Montanã” fala sobre a dura vida dos mineiros de Potosi, Bolívia, estabelecendo um perturbante paralelismo entre a exploração do recurso natural com a exploração do recurso humano.






“O Pontal de Paranapanema”, de Francisco Guariba (Brasil, 2005)

A zona de Paranapanema serve de exemplo aos conflitos gerados pela posse da terra, desde os tempos da “grilagem” (método pelo qual os documentos que legalizavam a posse de terras eram colocados numa gaveta com grilos para que adquirissem um aspecto envelhecido) até à luta dos movimentos dos sem-terra e a reforma agrária.






“Conflict Tiger” / “O Ataque do Tigre”, de Sasha Snow (Rússia, 2005)

No leste da Rússia as florestas têm vindo a sofrer com a acção do homem. Como resultado da perturbação deste habitat, a sua vida animal tem necessidade de procurar alimento e refúgio fora dos seus novos (reduzidos) limites. Nesta dramatização ficcional, um homem persegue um tigre que já fez mais de uma vítima mortal. Ainda que os mecanismos de tensão pudessem ser mais eficientes, este é importante filme sobre como o homem só se preocupa com os efeitos da sua acção sobre o meio ambiente quando os seus nefastos resultados lhe rugem à porta e de unhas afiadas.






“Ainda Há Pastores?”, de Jorge Pelicano (Portugal, 2006)

Este filme tem a mais valia de uma grande “personagem”, Hermínio, um pastor de de 28 anos de Casais de Folgosinho, Serra da Estrela. Infelizmente, Jorge Pelicano parece apenas se ter dado conta desse facto na sala de montagem, e o filme sofre de uma grande falta de consistência, alternando entre os fortes momentos de um homem cujo maior sonho era ver actuar Quim Barreiros (fica-se na dúvida se, no filme, terá havido ou não manipulação com fins dramáticos para forçar o encontro entre Hermínio e Quim Barreiros, por isso darei o benefício da dúvida) e outras pequenas histórias paralelas, sem ligação à anterior a não ser pelo facto de, também elas tratarem de realidades serranas.

A grande fraqueza deste filme reside, sem sombra de dúvida em tudo o que se relaciona com a narração em off. Começando pelo texto, um conjunto de clichés que rasa o ridículo e o tom excessivamente poético para uma realidade tão nua. Adicionalmente, a voz do radialista Fernando Alves é de tal maneira interpretativa e condescendente que retira a força documental da obra.

O mérito de Pelicano reside no respeito extremo por estas pessoas genuínas. Prova disso foi também a presença de Hermínio no dia de apresentação desta obra no festival. Esta atitude é essencial para fazer bons documentários. A técnica aprende-se e treina-se. Mais informações no blog http://aindahapastores.blogspot.com.






“Doutor Estranho Amor, ou como aprendi a amar o preservativo e deixei de me preocupar”, de Leonor Areal (Portugal, 2004)

É chocante ver o nome de um dos meus filmes preferidos vilipendiado para um documentário com esta falta de bom-gosto e de qualidade. “Doutor Estranho Amor...” começa com um cenário de evento social filmado em tons vermelhos, a péssima captação de som acompanha a tentativa de discernir no escuro uma ou outra pessoa conhecida. Passa-se depois para o acompanhamento de uma Brigada Universitária de Intervenção, ou seja, um grupo de estudantes de medicina que se desloca a escolas secundárias no sentido de divulgar informação sobre comportamentos sexuais saudáveis.

Ignorando completamente o conceito de montagem, esta obra é, no mínimo, alarmista. O seu carácter didáctico é tanto mais assustador quando vemos as (más) técnicas e metodologias pedagógicas usadas por esta equipa para transmitir a sua mensagem. Apelar a jovens desmotivados e com problemas de ordem social e escolar é um desafio imenso e, nesse sentido, há bastante valor neste iniciativa. No entanto, é preciso ter claro que este tipo de soluções não visa acalmar consciências nem fazer simplesmente uso dos orçamentos designados para o efeito. Concentrar esforços e direccioná-los para objectivos concretos pode ser um bom começo. Em “Doutor Estranho Amor...” os assuntos são, na sua maioria, totalmente paralelos, e o tema do preservativo é, no total, abordado apenas um par de vezes.




“Rua 15 - S.João”, de António Barreira Saraiva (Portugal, 2006)

Pegue-se no vosso pior vídeo caseiro, junte-se um assunto apenas relevante para as pessoas que nele entram, exclua-se toda a hipótese de montagem, estenda-se a sua duração com uma infindável cena de dois miúdos a dançar ku-duro, umas outras de pessoas a decorarem as fachadas das suas casas para a noite de S.João e mais umas senhoras desafinadas a cantarem canções típicas. Ah, repita-se estas só para dar um tom mais pitoresco. No final, projecte-se tudo isto na parede de uma das casas para toda a gente que foi filmada se poder ver, e para parecer mesmo que nos importamos com o objecto do documentário. É o suficiente para se ter o pior filme do festival.