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CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

Ninguém Sabe ****

31.03.06, Rita

T.O.: Daremo shiranai. Realização: Hirokazu Kore-eda. Elenco: Yûya Yagira, Ayu Kitaura, Hiei Kimura, Momoko Shimizu, Hanae Kan, You. Nacionalidade: Japão, 2004.





Keiko Fukushima (You) muda-se para um novo apartamento alugado e apresenta o seu filho Akira (Yûya Yagira), de 12 anos, ao senhorio, “esquecendo-se” de mencionar qualquer um dos seus outros três filhos: Kyoko (Ayu Kitaura) de 10 anos, Shigeru (Hiei Kimura) de 7 e Yuki (Momoko Shimizu) de 4. Para que se continue a não saber da sua existência, sob pena de serem expulsos do apartamento, Keiko impõe as regras, como se de um jogo se tratasse: não fazer barulho e não sair (excepção feita a Akira, que está encarregue de fazer as compras).


Nenhuma destas crianças vai à escola e não têm amigos. Sem tempo nem liberdade para serem crianças, mal conseguem alimentar os seus sonhos de tocar piano (Kyoko) ou de jogar basebol (Akira). Para a mãe, eles são úteis (simples bagagem, e não só metafórica), não só no sentido prático de fazerem todas as tarefas em casa (das limpezas ao pagamento das contas), mas (e talvez sobretudo) de alimentarem a sua sede de amor e de atenções. É esse mesmo romantismo que leva Keiko a abandoná-los, quando crê ter encontrado um homem que cuidará dela.


Keiko oferece presentes aos filhos, sem pedir desculpa ou explicar-se. Quando é confrontada por Akira com o seu comportamento negligente, apenas diz: “Eu tenho direito de ser feliz”. Mesmo antes de se ir embora, Keiko é já uma mãe ausente, e quando a única coisa que deixa aos filhos é dinheiro para se manterem por uns tempos, a vida deles não se altera de um modo significativo. Até porque acreditam que, mais cedo ou mais tarde, a mãe acabará por regressar. Quando isso não acontece, a sua ansiedade e apreensão aumentam.


Os adultos de “Ninguém Sabe” comportam-se como crianças (mimados, irresponsáveis, egoístas), enquanto paradoxalmente as crianças agem como adultos. É quando este ciclo é rompido, quando Akira tenta finalmente ser a criança que é, arranjar amigos e divertir-se, que o mundo (apesar de tudo) seguro que estas quatro crianças conhecem começa a desmoronar-se.


A arrumação, a limpeza, a própria aparência física dos jovens, vai-se tragicamente arruinando, e assistimos a quatro vidas em declínio, antes mesmo de terem começado. Na ausência da mãe, as visitas ao mundo lá fora tornam-se os momentos de maior felicidade, e os universos de Akira, Kyoko, Shigeru e Yuki começam a expandir-se. Mas tal como sucedeu no Big Bang, muita coisa foi criada, mas muita outra foi destruída.


Kore-eda capta toda a intimidade da rotina dos irmãos dentro daquele pequeno apartamento, mas sem qualquer claustrofobia. O mesmo não se pode dizer dos sentimentos, quase totalmente contidos, sem explosões ou confrontos, mas onde se lê o profundo amor que os une. Kore-eda opta pela evidência através do contraste, como sucede no início do filme, em que uma situação horrível se mistura com o divertimento característico das crianças, ou como um jogo de basebol reflecte a total ausência e necessidade de uma figura protectora.


Este é um filme de emoções intensas, onde paira a iminente sensação de calamidade. Apesar da coragem, da resistência, e da capacidade de (apesar de tudo, ou por causa de tudo) estas quatro crianças conseguirem vencer o desespero com algum humor, a indiferença das grandes sociedades impessoais continua a ser desarmante e incontornável.


Baseando-se livremente num incidente que ocorreu em 1988 em Nishi-Sugamo, quando quatro crianças foram abandonados pela mãe e deixadas sozinhas durante 6 meses, Kore-eda rejeita qualquer abordagem sociológica ao tema, tratando as emoções dos quatro jovens com uma subtil sensibilidade. Quase todos os acontecimentos são mostrados do ponto de vista de Akira, e esta subjectividade torna tudo ainda mais duro. A mãe nunca é mostrada como um monstro, porque não é assim que os filhos a vêem. Para garantir espontaneidade nas representações, Kore-eda não deu o guião aos seus jovens actores, limitando-se (?) a dar-lhes as falas e explicar-lhes o que pretendia. O ambiente criado é dolorosamente real, e quase se pode sentir o cheiro dos restos de comida e sujidade acumulados no apartamento. As interpretações das crianças são, sem excepção, isentas de falsidade, mas o poder do olhar de Yûya Yagira vem justificar o prémio de melhor interpretação masculina na edição de 2004 do Festival de Cannes.


“Ninguém Sabe” foi filmado durante um ano, o que facilitou a sincronia com a cronologia do filme, e permitiu não só filmar as mudanças das estações, mas também o crescimento das crianças (facto apontado num dos momentos mais dramáticos do filme). A atenção ao detalhe é também evidente, em especial o vermelho do verniz (recurso utilizado com grande inteligência como marca da passagem do tempo), da bola, do desenho da mãe, das flores, como símbolo do amor que é necessário para um crescimento / florescimento saudável. Um amor que jamais poderá ser enviado por correio com uma nota apensa.


A melancolia destas crianças é dolorosa e quase insuportável. A sua dureza perante os mais violentos acontecimentos chega a ser incompreensível. E há uma parte muito forte que nos envolve nesta história, e que se chama culpa colectiva. Fomos nós que os abandonámos à sua sorte, nós o sistema de apoio social, nós os vizinhos que ignoram os abusos, nós os pais e mães que não merecem esse nome.


Este é um dos filmes mais tristes que já vi, mas de uma beleza que só é possível através de um olhar inocente. E o que acontece depois de se perder uma infância à qual nunca se teve direito?


Ninguém sabe.






















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