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CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

CINERAMA

CRÍTICA E OPINIÃO SOBRE CINEMA

Ils Ne Mouraient Pas Tous Mais Tous Étaient Frappés ***

14.10.06, Rita

Realização: Sophie Bruneau e Marc-Antoine Roudil. Género: Documentário. Nacionalidade: Bélgica / França, 2005.





À semelhança de “Sauf Le Respect Que Je Vous Dois”, “Ils Ne Mouraient Pas Tous Mais Tous Étaient Frappés” * aborda também o tema do sofrimento no trabalho, desta feita sob a forma documental. Sob a forma de entrevistas, em consultas com clínicos especializados em patologias profissionais, uma operadora de uma linha de montagem, um director de uma agência bancária, uma auxiliar de uma casa de repouso, e uma gerente de loja dão o testemunho das suas traumáticas experiências laborais, todas com reflexos na sua saúde psicológica e/ou física.


Em 2004, a antropóloga Sophie Bruneau e o cineasta Marc-Antoine Roudil filmaram 37 casos em hospitais públicos da região parisiense, dos quais seleccionaram estes quatro, ao mesmo tempo específicos e semelhantes. Todos afirmam a sua entrega ao trabalho, aceitando as exigências de produtividade e disciplina até ao limite do sustentável. Da pressão e humilhação para a depressão nervosa vai um passo. A ruptura com o seu caminho profissional faz-se com um sentimento de traição, como uma peça que já não funciona são desprezados e trocados. E procuram, desesperadamente mas em vão, as razões objectivas que os tranquilizem.


Os planos são longos e fixos, e, apesar dos testemunhos serem totalmente pertinentes, do ponto de vista visual, “Ils Ne Mouraient...” torna-se muito pouco cativante.


“Ils Ne Mouraient...” assume, sem timidez, o ponto de vista parcial das vítimas. A segunda parte do filme, um debate entre o sociólogo Christophe Dijours e os terapeutas (cujo trabalho é auxiliado por uma rede de advogados e juristas) lançam alguns temas de discussão que mereciam uma reflexão mais atenta e global. Por um lado, temos novas formas de organização do trabalho e de avaliação de desempenho. Por outro, um crescente sofrimento individual originado pelo trabalho. Claro que tanto política como economicamente convém ignorar uma ligação entre os dois.


Os indivíduos têm vindo a perder os mecanismos de defesa colectiva que até aqui os protegiam. Isolados, sofrem mais facilmente, mas também são mais fáceis de controlar. Em suma, a solidariedade está em decadência.


Há ainda uma profunda questão ética associada a estas situações. Muitas destas pessoas compactuaram - pelo silêncio, por medo - com casos idênticos que aconteciam ao seu lado, e por isso sabem que estão sozinhas na sua luta e na sua dor. A sua voz é apenas um murmúrio que se quer fazer ouvir num mundo sufocado pelo barulho das máquinas registadoras.






* O título tem origem na fábula de La Fontaine - LES ANIMAUX MALADES DE LA PESTE.



OS ANIMAIS ISCADOS DE PESTE
La Fontaine (tradução de Machado de Assis )


Mal que se espalha o terror e que a ira celeste
Inventou para castigar
Os pecados do mundo, a peste, em suma, a peste,
Capaz de abastecer o Aqueronte num dia,
Veio entre os animais lavrar;
E, se nem tudo sucumbia,
Certo é que tudo adoecia.
Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento,
Catava mais nenhum sustento.
Não havia manjar que o apetite abrisse,
Raposa ou lobo que saísse
Contra a presa inocente e mansa,
Rola que à rola não fugisse,
E onde amor falta, adeus, folgança.
O leão convocou uma assembléia e disse:
"Sócios meus, certamente este infortúnio veio
A castigar-nos de pecados.
Que, o mais culpado entre os culpados
Morra por aplacar a cólera divina.
Para a comum saúde esse é, talvez, o meio.
Em casos tais é de uso haver sacrificados;
Assim a história no-lo ensina.
Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,
Pesquisemos a consciência.
Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glutão,
Devorei muita carneirada.
Em que é que me ofendera? em nada.
E tive mesmo ocasião
De comer igualmente o guarda da manada.
Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto.
Mas, assim como me acusei,
Bom é que cada um se acuse, de tal sorte
Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto
Justo) caiba ao maior dos culpados a morte".
"Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei
Bom demais; é provar melindre exagerado.
Pois então devorar carneiros,
Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado?
Não. Vós fizestes-lhes, senhor,
Em os comer, muito favor.
E no que toca aos pegureiros,
Toda a calamidade era bem merecida,
Pois são daquelas gentes tais
Que imaginaram ter posição mais subida
Que a de nós outros animais".
Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso.
Ninguém do tigre nem do urso,
Ninguém de outras iguais senhorias do mato,
Inda entre os atos mais daninhos,
Ousava esmerilhar um ato;
E até os últimos rafeiros,
Todos os bichos rezingueiros,
Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.
Eis chega o burro: "Tenho idéia que no prado
De um convento, indo eu a passar, e picado
Da ocasião, da fome e do capim viçoso,
E pode ser que do tinhoso,
Um bocadinho lambisquei
Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade".
Mal o ouviu, a assembléia exclama: "Aqui del-rei!"
Um lobo, algo letrado, arenga e persuade
Que era força imolar esse bicho nefando,
Empesteado autor de tal calamidade;
E o pecadilho foi julgado
Um atentado.
Pois comer erva alheia! ó crime abominando!
Era visto que só a morte
Poderia purgar um pecado tão duro.
E o burro foi ao reino escuro.
Segundo sejas tu miserável ou forte
Áulicos te farão detestável ou puro.